INCENTIVO À INDÚSTRIA DO CARRO: qual o interesse PÚBLICO num programa de incentivo à COMPRA DE CARROS?

Decisão do governo federal de ampliar em R$ 300 milhões o subsídio para compra de carros que já era de R$ 500 milhões dá a impressão de que, sempre que pedir, setor receberá ajuda
Roberta Soares
Publicado em 02/07/2023 às 9:00
Vendas de automóveis cresce, enquanto a mobilidade urbana piora nas cidades brasileiras. Mas o que você tem a ver com isso? Foto: FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM


A generosidade do governo federal em ampliar o programa de incentivo à indústria automotiva - liberando mais R$ 300 milhões apenas para aquisição de automóveis - voltou a acender o alerta entre os defensores da mobilidade urbana sustentável. Mais uma vez. E não é para menos.

A leitura que tem sido feita é de que, a cada apelo do setor, o governo federal irá atender com mais recursos, gesto que já tem e terá cada vez mais consequências sérias sobre o uso das nossas cidades. Ao menos o uso que muitos buscam: cidades mais humanas, mais participativas, justas socialmente e um pouco mais sustentáveis.

E é difícil não fazer essa leitura diante dos fatos: o programa de incentivos à compra de carros "populares" passou de R$ 500 para R$ 800 milhões. Somente para os automóveis. A venda de carros cresce como esperado, apesar da reclamação de algumas montadoras, como a Volkswagen, que suspendeu temporariamente a produção nas fábricas de São José dos Pinhais, no Paraná, São Bernardo do Campo e Taubaté, em São Paulo, devido ao que definiu como ‘estagnação’ do mercado automotivo.

Dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) indicam que houve um grande aumento da circulação de possíveis clientes nas concessionárias do País. Esse aumento de passagem variou entre 30% a mais de 260%, em alguns casos.

E, também de acordo com a Fenabrave - que representa 7.400 concessionárias de veículos, em mais de 1.100 municípios brasileiros -, a expectativa é de que o movimento aumente. Talvez não seja como o setor gostaria, mas é fato que cresce e que o governo federal tem atendido aos apelos.

Por isso, a preocupação. Já foi antes, quando o presidente Lula validou o programa, apesar de, fora do País, colocar o Brasil na vanguarda da discussão sobre a crise climática mundial. E é ainda mais agora, com o novo gesto de socorro à indústria do carro.

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FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM - Por isso, a preocupação. Já foi antes, quando o presidente Lula validou o programa, apesar de, fora do País, colocar o Brasil na vanguarda da discussão sobre a crise climática mundial. E é ainda mais agora, com o novo gesto de socorro à indústria do carro

“O IEMA não fez uma análise a fundo do programa, temos um conhecimento básico, mas nossa impressão é de que é, mais uma vez, um contra senso ao que seria necessário a uma mobilidade urbana sustentável”, afirma David Tsai, gerente de Projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).

“Não é certo o governo abrir mão de recursos públicos para beneficiar a propriedade privada de alguns poucos. Enquanto existe uma uma população mais vulnerável sem acesso à cidade e ao transporte público”, reforça.

"“Não é certo o governo abrir mão de recursos públicos para beneficiar a propriedade privada de alguns poucos. Enquanto existe uma uma população mais vulnerável sem acesso à cidade e ao transporte público” " - David Tsai, do IEMA

“E, ainda mais, para um programa que não tem sequer sua efetividade avaliada. Que não tem efeitos estruturais e duradouros para o País, como a geração de empregos, por exemplo. Nos faz questionar: qual o interesse público nesse programa de incentivo à compra de carros?”, alega o engenheiro químico e geógrafo.

David Tsai destaca que a indústria automotiva é um ativo muito importante do País, mas é necessário uma política estruturante para o País, com um olhar mais ecológico, que ajude na transformação de cidades para as pessoas e com investimentos no transporte público.

“Não podemos simplesmente estimular o transporte individual. É um paliativo que beneficia poucas pessoas e que vai na contramão do mundo. Não existe uma argumentação racional para um programa desses se não colocarmos os resultados esperados. Não há uma estruturação da política industrial nem de mobilidade urbana. A impressão é de que estamos enxugando gelo”, analisa.

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Todo o programa de incentivo envolveu a quantia de R$ 1,5 bilhão, dos quais R$ 500 foram só para os carros - acrescidos de R$ 300 milhões. O restante foi dividido entre as montadoras de ônibus, vans e caminhões.

REAÇÃO DAS ENTIDADES EM DEFESA DA MOBILIDADE URBANA

Clarisse Linke, diretora-executiva do ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento), organização que já tinha assinado um manifesto contra o pacote de estímulo à compra de carros, também faz críticas à ampliação dos benefícios.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM - E o transporte público coletivo, tão necessário para democratizar as cidades, onde fica nessa história?

“É contraproducente e vai, mais uma vez, na contramão do que defendemos como prioridade para as cidades e para a organização orçamentária das famílias brasileiras. Precisamos de investimentos em transporte público. Só assim vamos conseguir avançar na qualidade do serviço e, principalmente, no acesso da população”, destacou.

“Sabemos que a pressão econômica das indústrias é grande e histórica, nossa história mostra isso. Lembrem que, em 2012, quando a Política Nacional de Mobilidade Urbana foi criada, o Brasil vivia uma explosão de venda de carros. Estávamos no auge”, relembra.

“Sabemos do simbolismo que o automóvel ainda representa. Que ter um carro significa que as coisas estão melhorando. Que o papel do carro simboliza o avanço familiar e individual. Mas nossas cidades não suportam mais. E, a médio e longo prazo, a conta chegará”, diz.

“Pagaremos com mais congestionamentos e uma pior qualidade do ar. A curto prazo, o carro funciona como um avanço. Mas a longo prazo, é uma deseconomia, um dano grande. Por isso a importância de estimular o transporte público”, alerta.

POBRES SOFREM MAIS COM EXCESSO DE CARROS NAS RUAS

As entidades alertam que os maiores prejudicados pelo excesso do uso de carro são os mais pobres: a maioria dos mortos no trânsito são pobres e negros. Os números recentes do DataSUS do Ministério da Saúde já confirmaram que as mortes no trânsito cresceram pelo segundo ano consecutivo, com 33.813 vítimas em 2021.

FELIPE RIBEIRO/JC IMAGEM - No Brasil, são mais de 30 mil mortes no trânsito por ano e, para cada morte, são sete internações em UTIs

Um número que representa um crescimento de 3,5% em relação a 2020, quando o País teve 32.716 mortes. Os bairros mais atravessados por vias rápidas, inseguras, viadutos e sem tratamento urbanístico para pedestres e ciclistas com segurança, são os periféricos. A maioria dos mortos pela poluição do ar são os mais pobres.

EXPECTATIVAS DE QUE O NOVO PAC DO GOVERNO LULA BENEFICIE O TRANSPORTE PÚBLICO

A expectativa de quem vivencia a mobilidade urbana sustentável se volta, agora, para o chamado Novo Pac ou PAC 3 (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo do presidente Lula. Todos aguardam que o governo federal beneficie o transporte público coletivo, tanto por ônibus como sobre trilhos.

“Existe uma discussão central que precisa ser feita em relação ao modelo de gestão e remuneração dos sistemas de transporte público e, sem dúvida, o governo federal precisa estar envolvido nela. As tarifas não podem mais ser suportadas apenas pelo usuário. Isso não garante um transporte público de qualidade e o governo federal tem papel fundamental nessa discussão”, alerta David Tsai do IEMA.

O Novo PAC tem a previsão de executar 2 mil obras no País, entre empreendimentos federais e estaduais. No pacote, estariam previstos investimentos em mobilidade urbana, eletrificação do transporte público, construção de corredores de ônibus e, principalmente, ampliação da malha de metrôs do País.

O governo Federal também estaria estudando incluir no PAC incentivos e financiamentos para renovação de frota de ônibus urbanos e metropolitanos.

SETOR DE TRANSPORTE URBANO TAMBÉM QUESTIONOU INCENTIVO AO CARRO

O programa de estímulo ao carro também foi criticado pelo setor de transporte público. Nem mesmo a tentativa do governo federal de “sustentabilizar” o pacote, incluindo os ônibus, foi suficiente para agradar os operadores. A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), entidade que representa as empresas operadoras de ônibus urbano de todo o País, avaliou que o programa tinha avançado, mas que ainda era insuficiente para superar a crise provocada pela pandemia de covid-19.

O principal ponto criticado foi a adequação do setor às regras do programa, que estipulou a idade acima de 20 anos para troca dos ônibus com desconto. A NTU alegou, quando o pacote foi lançado, no início de junho, que a idade acima de 20 anos não se aplicaria, na prática, às empresas operadoras brasileiras, cuja frota tem, em média, oito anos, chegando ao máximo de 13 anos em algumas cidades pesquisadas.

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