De quem é a responsabilidade pelo atropelamento do ator Kayky Brito, que luta pela vida desde o sábado (2/9), quando foi atropelado na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro? É do motorista, que não conseguiu evitar a colisão apesar de estar ‘dirigindo dentro das regras impostas pelo poder público’, ou da vítima, que atravessou apressada e descuidada a Avenida Lúcio Costa, um corredor viário da orla carioca, talvez a mais badalada do País?
A culpa é de todos nós. Deles e nossa. Do motorista, do pedestre, da Prefeitura do Rio de Janeiro, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) - leia-se governo federal -, e de toda a sociedade brasileira. A culpa é da indiferença com que o Brasil ainda olha para o limite de velocidade em suas ruas e avenidas. Sempre criando condições melhores para o automóvel circular e colocando o pedestre e os modais ativos em segundo plano, adequando-se a elas.
O limite de 70 km/h da Avenida Avenida Lúcio Costa é um exemplo desse cuidado que ainda predomina com o tráfego de veículos. É responsabilidade da Prefeitura do Rio, já assumida publicamente pelo prefeito Eduardo Paes, que prometeu rediscutir os limites nas vias à beira-mar da cidade.
A falta de uma fiscalização eletrônica efetiva é outro exemplo da falta de preocupação do poder público com a segurança viária dos mais frágeis. Assim como os limites de velocidade previstos no CTB que, apesar da crescente morte de pedestres no País e da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que as vias urbanas tenham limite máximo de 50 km/h, seguem focando nas vantagens para quem está nos veículos motorizados.
O PEDESTRE, MESMO CULPADO, SEMPRE SERÁ A VÍTIMA. A SOCIEDADE PRECISA ENTENDER ISSO
Não restam dúvidas de que o ator Kayky Brito foi imprudente na travessia - fato que as circunstâncias do atropelamento já comprovaram -, mas ele sempre, sempre e sempre será a vítima. Porque nos sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se define. Entenda) o mais fraco é sempre a vítima.
E no trânsito, o mais frágil é o pedestre e todos que compõem o sistema de trânsito devem protegê-lo. Até mesmo os ciclistas. A proteção vem do maior para o menor, numa lógica que força todos os veículos a protegerem a mobilidade ativa - ou seja, o ciclista e o pedestre.
Sempre, em qualquer situação.
No trânsito, todos somos pedestres. Podemos estar motoristas, passageiros e ciclistas, mas somos mesmo é pedestres.
Mesmo quando o pedestre dá causa ao sinistro, ele segue sendo a vítima. A sociedade precisa entender isso.
REDUÇÃO DA VELOCIDADE LIMITE É URGENTE E NECESSÁRIA
O atropelamento do ator Kayky Brito precisa instigar uma discussão mais ampla e profunda sobre os atropelamentos. Não pode ficar resumida à luta do bem contra o mal, do certo e do errado. É urgente discutir a revisão do limite de velocidade das ruas e avenidas para proteger vidas.
O motorista de aplicativo que atropelou o ator, segundo afirmou e foi confirmado pela passageira que estava no veículo, estava dirigindo com segurança e “dentro dos padrões de trânsito” impostas pelo poder público. Não fugiu do local e prestou socorro a Kayky Brito, o que fez toda a diferença na sobrevida da vítima - a própria irmã do ator reconheceu o gesto publicamente.
Mas, mesmo assim, o condutor atropelou o ator e tem vivido um inferno espiritual e real diante do ocorrido. Ao ponto de fazer apelos nas redes sociais para conseguir recursos para continuar a trabalhar. Ou seja, imprudente ou não, o pedestre Kayky Brito segue sendo a vítima.
ATROPELAMENTOS ESTÃO CRESCENDO NO PAÍS
Os atropelamentos de pedestres têm aumentado no Brasil e essa constatação reforça a fragilidade da situação. Levantamento da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) revelou uma preocupante alta de 13% no número de pedestres traumatizados em sinistros de trânsito em 12 estados no primeiro semestre de 2023, em comparação com o mesmo período de 2022.
Dos 12 estados em que houve aumento, Goiás apresentou o maior crescimento em números absolutos, com um adicional de 1.124 internações no último semestre. Seguido de São Paulo, com um aumento de 623 internações, e Minas Gerais com um acréscimo de 257 internações.
E a velocidade desenvolvida pelos veículos faz toda a diferença no momento de um atropelamento. A 30 km/h, há 10% de chance de fatalidade em um atropelamento; a 50 km/h, esse risco ultrapassa 80%. Um atropelamento no trânsito a uma velocidade de 60km/h equivale a aproximadamente uma queda do 6º andar. E essa vítima tem 98% de chances de vir a óbito. E a 70 km/h, como no atropelamento do ator Kayky Brito, a fatalidade é praticamente certa. Só um milagre.
“Acho que estamos num momento de fazer pressão máxima para a redução da velocidade nas ruas e avenidas do País. A matança de pedestres que está acontecendo é uma imoralidade maior ainda porque não se mexe na velocidade. E agora estão querendo culpar o ator carioca porque atravessou fora da faixa. Ou seja, decretou-se no Brasil a pena de morte para quem atravessa fora da faixa”, afirma Francisco Cunha, um reconhecido defensor e militante da mobilidade ativa no País.
“A cidade é das pessoas, não dos carros. Velocidade e faixa de pedestres são concessões das pessoas à existência do automóvel. Não podemos conceder 70km/h na cidade. Aliás, nunca concedemos, tiraram da gente”, defende Daniel Valença, da Ameciclo (Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife).
Para finalizar, é importante considerar que não existem e nunca vão existir faixas de segurança suficientes para todos os pedestres. E o trânsito precisa ser visto como um ecossistema de todos que o compõem. Não apenas dos veículos motorizados.