Mortes no trânsito: ciclistas criticam posicionamento da Prefeitura do Recife e cobram ações de segurança para quem pedala
Num intervalo de oito dias, três ciclistas - dois homens e uma jovem mulher - foram atropelados e mortos em diferentes bairros da cidade
O posicionamento da Prefeitura do Recife sobre as mortes de três ciclistas em um curto intervalo de oito dias foi fortemente criticado e repudiado pelos cicloativistas da cidade. A Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo) divulgou uma nota de repúdio ao posicionamento assinado pela Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU), avaliado como insensível e omisso, ao isentar a gestão municipal de qualquer responsabilidade sobre as mortes.
A entidade, que se posiciona publicamente contra a insegurança nas ruas para quem pedala e caminha, fez críticas sob diversos aspectos e todas fortes. Acusou a gestão municipal de falta de empatia com as vítimas e que se colocou na cômoda posição de culpabilizar o governo do Estado. Tudo isso quando os números de vítimas do trânsito crescem na cidade.
“Sequer há lamentos pelo ocorrido ou propostas de ações para que isso seja evitado no futuro. Ao invés disso, procura se esquivar de sua responsabilidade ora enaltecendo seus feitos, ora jogando a culpa para o governo do Estado. Isso, além de ser desumano, demonstra que não há interesse político da CTTU em alterar um cenário de mortes no trânsito que, de fato, só faz crescer na cidade, tendo dobrado nos últimos dois anos”, diz a entidade.
A Ameciclo ainda pontua que a violência no trânsito do Recife só aumenta: cresceu 116,5% no período de janeiro a maio, entre os anos de 2022 e 2024.
Cicloativistas e especialistas em segurança viária ouvidos pelo JC concordam que a insegurança tem sido marca do trânsito no Recife. “A Política Municipal de Mobilidade Urbana, nos artigos que mencionam eficiência e segurança viária (art. 6º, inciso II), claramente não está sendo aplicada”, avalia um especialista em reserva.
E segue fazendo o alerta. “O mais impressionante é que, ao invés de priorizar medidas como faixas exclusivas de ônibus – como previsto nos artigos 6º, incisos IV e VI da Política Municipal de Mobilidade Urbana, que priorizam a segurança e o transporte público sobre veículos motorizados individuais –, a CTTU opta por "testar" faixas exclusivas para motos, o meio de transporte que mais gera sinistros e internações hospitalares”, pontua.
Confira a nota na íntegra:
“Nós da Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife, Ameciclo, viemos externar nosso completo repúdio à nota divulgada pela Autarquia de Trânsito e Transportes do Recife, CTTU, na matéria "Mortes no trânsito: Prefeitura do Recife se pronuncia sobre mortes de ciclistas" da coluna de Mobilidade de Roberta Soares do dia de hoje, 1º de outubro de 2024.
A nota não demonstra qualquer empatia pelas vidas perdidas. Sequer há lamentos pelo ocorrido ou propostas de ações para que isso seja evitado no futuro. Ao invés disso, procura se esquivar de sua responsabilidade ora enaltecendo seus feitos, ora jogando a culpa para o Governo do Estado. Isso, além de ser desumano, demonstra que não há interesse político da CTTU em alterar um cenário de mortes no trânsito que, de fato, só faz crescer na cidade, tendo dobrado nos últimos dois anos.
Há pouco tempo, em 25 de fevereiro de 2024, a presidente da CTTU, Taciana Ferreira - na gestão do órgão desde 2013 - escreveria na mesma coluna que adotava a filosofia da Visão Zero, justificando que "Porque acreditamos e, enquanto gestão pública, nos posicionamos com a filosofia da Visão Zero - de que nenhuma morte no trânsito é justificável, todas podem ser evitadas."
Porém, ao emitir a nota do dia de hoje, a CTTU demonstra que não internalizou o básico da filosofia dos Sistemas Seguros, de que a responsabilidade pelas mortes no trânsito são compartilhadas com o desenho, operação, uso e fiscalização e que devem ser proativas para evitá-las.
Da mesma forma que é inaceitável o ente público responsável pela segurança pública buscar outros culpados para os homicídios de determinada região, é inadmissível que a gestão municipal indique outros responsáveis que não a si própria pela segurança viária.
DETALHAMENTO DA INSEGURANÇA
O que fez a prefeitura para evitar que essas mortes acontecessem? No caso de Val, na Praça da Convenção, em Beberibe, a rota dele não contemplava a ciclovia citada na resposta da CTTU, pois está na transversal. Após reformar a praça, a prefeitura asfaltou a via e permitiu a entrada de veículos grandes como ônibus neste local sem nenhum tratamento de segurança, como rede semafórica ou redutores de velocidade. O motorista de ônibus, portanto, não obedeceu a preferência de Val e o atropelou.
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No caso de Sandro, na Av. João Tude de Melo, a prefeitura ignorou por 10 anos a necessidade expressa do Plano Diretor Cicloviário da existência de uma ciclovia no local e jogou a responsabilidade para adversários políticos, ignorando que eram nos primeiros 4 anos de uma gestão de mesmo partido que esta ciclovia deveria ter sido feita, o que salvaria Sandro e tantas outras vidas.
ACUSAÇÕES CONTRA O ESTADO
É hipocrisia colocar a responsabilidade no Estado, não só por ter mudado a cobrança após a mudança de gestão, como também por ter construído a Ciclovia da Agamenon Magalhães e ter licitado a Ciclovia da Mascarenhas de Moraes, ambas também previstas pelo PDC para a responsabilidade compartilhada entre Estado e Municípios.
Afinal, são recifenses que serão beneficiados com essa obra e a prefeitura assumiu a responsabilidade de implantação ao inserir na lei da Política Municipal de Mobilidade Urbana, mas, pelo visto, a própria prefeitura não enseja a implementação.
No caso de Gabi, a CTTU cita a existência de uma ciclofaixa de 600 metros e erra o local onde está implementada, pois no local em si, em pedido de informação realizado no dia 26 de maio de 2023, a CTTU negou a existência da estrutura no local. Porém, o fato é que no local há a primeira ciclovia da cidade do Recife, inaugurada nos anos 1980, mas a CTTU proibiu a circulação de bicicletas em 2022, uma semana depois da inauguração da Ciclovia da Agamenon Magalhães.
Ou seja, não somente a ciclovia existe - e teria salvado a vida de Gabi -, como está prevista para ser de responsabilidade da prefeitura, porém teve a circulação de bicicletas proibidas. No local, onde estão previstas ciclovias do Parque Capibaribe, ao invés de implementá-las, a prefeitura preferiu colocar uma operação de inversão temporária de trânsito, o que deixa o local mais confuso e perigoso para todas as pessoas que circulam pela região.
REDUÇÃO DE VELOCIDADE PARA 50 KM/H
Além de todo o descaso descrito acima, a Prefeitura do Recife, na gestão de João Campos e Taciana Ferreira, tem ignorado lei municipal, assinada pelo próprio prefeito em dezembro de 2021, que determina a redução das velocidades da cidade para um máximo de 50km/h.
No entanto, passados quase três anos, a prefeitura não reduziu a velocidade em nenhuma das vias do Recife. Está também determinado em lei que a fiscalização eletrônica deve acontecer em regime permanente, mas em vez disso, a prefeitura nos deixou um ano com a cidade quase toda sem fiscalização eletrônica.
É lei que devemos desestimular os veículos motorizados individuais e estimular os modos ativos e coletivos de transporte, no entanto, a prefeitura gastou mais de R$ 1,3 bilhão em uma década com medidas para acelerar carros e motos, e, em contrapartida, quase não temos ciclovias em avenidas e foram feitos somente 5,4 km de faixas exclusivas de ônibus pela gestão atual.
MALHA CICLOVIÁRIA CRESCEU, MAS É INSEGURA
A malha cicloviária, enaltecida pela nota da CTTU, é quase toda composta por ciclofaixas (estruturas com pouca proteção), com suas conexões feitas por ciclorrotas (que não tem nenhum nível de proteção) e estão posicionadas em locais divergentes do estabelecido pelo Plano Diretor Cicloviário (que são as principais avenidas).
O suposto aumento de 716% no PDC é uma mentira, haja vista que este é o percentual calculável do incremento de malha cicloviária, e que está muito abaixo dos 260 km de ciclovias (estas sim com proteção garantida), ainda mais porque de ciclovia só tivemos os acréscimos da Agamenon Magalhães e Palmares/Mário Melo dentro do Plano Diretor Cicloviário.
Desta forma, não adianta ter consultoria internacional de segurança no trânsito, política de mobilidade urbana aprovada em lei, manual de desenho de ruas, se todas essas medidas são secundárias para essa gestão. Não se cumpre a lei, não se obedece o Manual de Desenho de Ruas do Recife, não se sabe se escuta a consultoria.
AUMENTO DE 116,5% NO NÚMERO DE SINISTROS COM VÍTIMAS
O que temos de fato e mensurado pelos números, é um aumento vertiginoso dos sinistros com vítimas no trânsito, tendo aumentado 116,5% no período de janeiro a maio, entre os anos 2022 e 2024. Nós estamos em risco ao nos deslocar no Recife, sejam ciclistas, pedestres, motociclistas ou motoristas. Estamos sob uma gestão que está preocupada em ampliar e acelerar o fluxo de automóveis e não de garantir a segurança das pessoas.
Aliás, temos como cada vez mais claro que a Prefeitura do Recife trabalha com o modus operandi de fazer o máximo possível para o ciclista, pedestre e usuário de ônibus, contanto que não se mexa na circulação de automóveis, ou seja, a gestão de mobilidade da cidade, de toda a população do Recife, é subordinada à prioridade de locomoção de uma minoria de 15% da população - os motoristas.
Este modelo de gestão chegou ao seu limite”.