Mortes no trânsito: 42% das vítimas do trânsito do Recife morrem à noite e de madrugada, quando a fiscalização de velocidade está desligada
Os ocupantes de motocicletas são as principais vítimas do trânsito no Recife, puxados pela explosão do serviço de Uber e 99 Moto e de delivery
Quase metade das vítimas do trânsito do Recife morrem à noite e de madrugada, horário em que, há 17 anos, toda a fiscalização eletrônica da cidade está desligada e o volume de veículos tem uma redução estimada em mais de 60%.
Esse é mais um dado assustador do Relatório Preliminar de Sinistros de Trânsito com Vítimas Fatais 2024, divulgado pela gestão municipal na segunda-feira (18/11), em alusão ao Dia Mundial em Memória das Vítimas do Trânsito, celebrado no terceiro domingo do mês de novembro.
O relatório constatou que, em 2023, 42% das mortes nas ruas e avenidas da cidade aconteceram entre as 18h e as 6h. O horário da noite - 18h às 23h59 - responde por 26% das mortes no trânsito, enquanto que a madrugada - 0h às 5h59 - representa 16%. A manhã - das 6h às 11h59 - fica com 28% e a tarde - das 12h às 17h59 - com 30% das ocorrências que resultam em óbitos.
Vale lembrar que há 17 anos o Recife desliga toda fiscalização eletrônica da cidade por determinação da Justiça de Pernambuco, provocada por uma ação do Ministério Público (MPPE). E que, apesar dos números assustadores, a gestão municipal até hoje não tentou reverter a situação judicialmente. Nem mesmo o religamento, ao menos, da fiscalização de velocidade.
MORTES NO TRÂNSITO DO RECIFE AUMENTARAM 37% EM 2023
Os números do Relatório Preliminar de Sinistros de Trânsito com Vítimas Fatais 2024 mostraram que o trânsito da cidade segue matando muito. Em 2023, 144 pessoas morreram em sinistros de trânsito (não é mais acidente de trânsito que se define, segundo o CTB e a ABNT), o que representa um aumento de 37% em relação a 2022, quando as mortes totalizaram 105 registros.
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Desse total de óbitos, 50% aconteceram em rodovias que cortam a capital e 15% em vias urbanas. O relatório preliminar foi elaborado pela Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife (CTTU) em parceria com a Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global (BIGRS). O documento 2024 será fechado até o fim do ano, segundo a Prefeitura do Recife.
VIOLÊNCIA NO TRÂNSITO DO RECIFE NÃO PARA DE CRESCER DESDE 2021
Além do aumento assustador de quase 40% no número de mortos no trânsito do Recife, os dados oficiais também revelam algo ainda mais preocupante: que o crescimento tem sido constante, verificado desde 2021, quando os Relatórios de Segurança Viária começaram a ser elaborados pela gestão, em parceria com a Bloomberg.
Em 2022, houve um aumento de 19% no número de mortes em relação a 2021. O Recife saiu de 88 para 105 óbitos. O ano de 2021 - primeiro ano do relatório, já que a consultoria da BIGRS começou em 2020 -, foi o único a ter reduções: a capital saiu de 109 mortes em 2020 para 88 óbitos em 2021. Foi o primeiro ano, considerando a série histórica desde 2017, que a capital registrou menos de 100 mortes no trânsito.
E, agora, de 105 mortes em 2022 para 144 em 2023, o que representou o crescimento de 37%. “É um aumento expressivo e preocupante, sem dúvida. Mas é importante ressaltar que é um fenômeno que vem sendo verificado no País e até mesmo em toda a América Latina. É resultado, ainda, do pós pandemia de covid-19, quando houve um crescimento dos serviços de aplicativos de transporte e de delivery com motocicletas”, afirma Gustavo Sales, coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global no Recife.
RELAÇÃO COM A EXPLOSÃO DO UBER E 99 MOTO E DOS SERVIÇOS DE DELIVERY
O Relatório Preliminar de Sinistros de Trânsito com Vítimas Fatais 2024 ainda não faz relação direta entre o aumento das mortes no trânsito e os serviços de delivery e de transporte de passageiros com motocicletas, como Uber e 99 Motos, mas os números indicam a perigosa conexão. Em 2023, os ocupantes de motos responderam por 48% das mortes no trânsito do Recife.
Desde 2020, exatamente quando os serviços de delivery explodiram no País com a pandemia e, no fim de 2021, quando a Uber criou o serviço de Uber Moto, os ocupantes de motos (incluindo condutores e passageiros) superaram os pedestres como as principais vítimas do trânsito na cidade.
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“A gente não gosta de responsabilizar os serviços de transporte de passageiros com motocicletas e de delivery, mas sabemos que a população está usando o Uber e 99 Moto, por exemplo, como alternativa ao transporte público. E isso se reflete na segurança viária porque estamos tirando o passageiro do transporte seguro para o inseguro, de vulnerabilidade maior”, pontua Gustavo Sales.
Segundo o coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg, o trabalho realizado em parceria com a CTTU tenta mitigar essa migração do transporte público para a motocicleta. Já que, proibir o Uber e 99 Moto ou regulamentar o serviço, criando regras que promovam mais segurança ao transporte de pessoas com motos, é uma decisão puramente política e, não, técnica.
“Atuamos nos quatro eixos da segurança viária, que são a fiscalização, a comunicação, a engenharia (implementação de ruas seguras) e a gestão de dados. A CTTU tem sido uma forte aliada e acredito que o trabalho que vem sendo desenvolvido nesses últimos anos, principalmente através da gestão de dados, são uma boa base para a gestão atuar e tomar decisões”, reforça Gustavo Sales.
ENTENDA O DESLIGAMENTO DA FISCALIZAÇÃO ELETRÔNICA DO RECIFE
Desde 2006, quando, por força de decisão judicial, a cidade passou a desligar todo e qualquer equipamento de fiscalização eletrônica de trânsito, sejam os que controlam a velocidade, como os de avanço de semáforo. Não se tem notícia de outra cidade brasileira que faça o mesmo.
Na época, o juiz José Marcelon Luiz e Silva, então na 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital, determinou o desligamento dos equipamentos das 22h às 5h (em 2006 eram apenas os bandeirões, chamados de lombadas).
O magistrado foi favorável a uma ação civil pública do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que teve como autora a promotora Andréa Nunes. O Recife tinha apenas três equipamentos (na Cabanga, na Avenida Alfredo Lisboa e na Avenida Abdias de Carvalho) e o argumento do MPPE era de que havia um aumento no número de assaltos nessas áreas.
Embora os registros não fossem, comprovadamente, nos pontos onde havia fiscalização eletrônica. A CTTU recorreu até onde foi possível, mas em 2012 a apelação foi julgada pela 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), que confirmou a sentença de 1º grau. E, em 2013, a decisão transitou em julgado, ou seja, não cabia mais recursos para modificação da sentença.
O mais grave é que os números da própria gestão municipal mostram o estrago que esse desligamento promove não só moralmente - porque estimula o desrespeito aos limites por condutores infratores -, mas também na prática.
O horário das 22h às 5h respondia por até 40% de todas as mortes provocadas por colisões e atropelamentos na cidade entre 2014 e 2016. Para alarmar ainda mais, é importante lembrar que os registros foram feitos quando a frota circulante de veículos sofre uma redução de 60%.
Os dados comprovam o que estudiosos da segurança viária alardeiam há anos no País: que a fiscalização eletrônica de velocidade e de avanço de semáforos é ainda mais importante à noite porque é nesse turno quando o condutor mais acelera e ainda arrisca misturar bebida e direção.