Dois anos já se passaram, mas a impunidade continua fazendo parte da rotina diária de Jonas Correia de França, de 31 anos, e de Daniel Campelo da Silva, 52. Os dois foram atingidos nos olhos no momento em que passavam pela dispersão de um protesto pacífico contra o governo de Jair Bolsonaro, na área central do Recife. Os policiais militares identificados como autores dos tiros de elastômero (bala de borracha) contra os dois trabalhadores ainda não foram julgados criminalmente pela Justiça, nem no processo administrativo disciplinar na Secretaria de Defesa Social (SDS).
A ação violenta da Polícia Militar de Pernambuco contra os manifestantes - reprovada e com repercussão em todo o País - aconteceu na tarde do dia 29 de maio de 2021. PMs do Batalhão de Choque e da Radiopatrulha avançaram contra o grupo, que contava com integrantes de centrais sindicais, movimentos estudantis e sociais, além de representantes da sociedade civil. A mobilização, de caráter nacional, fazia críticas a Bolsonaro pela má condução de ações de combate à covid-19.
Jonas Correia havia acabado de largar e, ao visualizar a confusão entre PMs e manifestantes, na Ponte Princesa Isabel, telefonou para a esposa e avisou que iria se atrasar. Em seguida, ele foi atingido no olho direito e perdeu a visão. Os PMs não prestaram socorro.
Situação semelhante aconteceu com o adesivador Daniel Campelo. Ele passava pela Ponte Duarte Coelho, durante o protesto, quando foi atingido no olho esquerdo e também ficou cego.
Em ambos os casos, os trabalhadores não tinham qualquer ligação com a mobilização, mas foram vítimas da violência policial.
Investigações da Polícia Civil apontaram que o terceiro sargento do Batalhão de Choque Reinaldo Belmiro Lins foi o autor do tiro contra Jonas. Ele é réu pelo crime de lesão corporal grave, com o agravante de o crime ter sido cometido por um militar. A pena pode chegar a cinco anos de prisão, em caso de condenação. O processo está em fase de audiências de instrução e julgamento, segundo informação da assessoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Na época dos fatos, a SDS determinou o afastamento cautelar do policial por 180 dias, além do recolhimento de armas de fogo e carteira funcional. Dois anos depois, procurada pelo JC, a assessoria da SDS não informou se ele voltou às atividades ou se houve a renovação da medida cautelar.
Em nota, a assessoria da SDS alegou que a Corregedoria não concluiu o processo administrativo que pode resultar na exclusão de Reinaldo da corporação, mas não informou em que fase está a investigação e nem deu prazo para o resultado dela.
Dois anos depois, Jonas disse que está tentando retomar a vida. "Consegui voltar a trabalhar. Agora como auxiliar de serviços gerais", contou. Em acordo com o governo estadual, ele recebeu uma indenização, cujo valor não foi informado. O contrato também prevê que ele receba um salário mínimo mensal de forma vitalícia.
Sobre o processo criminal que pode resultar na condenação do PM que atirou nele, Jonas afirma que não acompanha o andamento. "Preferi não ir à audiência."
Por causa do tiro e da perda da visão, ele precisou passar por várias cirurgias nos últimos dois anos. "De vez em quando ainda dói. É a sequela", pontuou.
Ao contrário de Jonas, Daniel Campelo decidiu não fechar acordo com o governo de Pernambuco. E o caso foi levado à Justiça. Em caráter de tutela antecipada, o adesivador está recebendo mensalmente dois salários mínimos do Estado - que tentou recorrer da decisão, mas foi derrotado em segunda instância.
A Justiça ainda vai julgar o processo que pede uma indenização por danos morais e materiais e e se Daniel continuará tendo direito ao recebimento de salário mensal de forma vitalícia.
Por telefone, Daniel conversou brevemente com a reportagem. "Estou retomando as batalhas, mas passo por muitas dificuldades. Não estou trabalhando", desabafou.
Ele afirmou que também não tem informações sobre o andamento do processo criminal contra o policial militar que o cegou.
Em abril do ano passado, segundo informou a SDS na época, o PM foi identificado e indiciado por lesão corporal gravíssima (cuja pena pode chegar a oito anos de prisão) e por omissão de socorro (seis meses de detenção ou multa). Outros oito policiais do Batalhão de Radiopatrulha também foram indiciados por omissão de socorro. Os nomes deles não foram revelados.
O JC solicitou à assessoria da SDS, na última semana, uma atualização sobre os processos administrativos relacionados à conduta desses policiais, mas não houve resposta.
A assessoria, porém, disse que o PM Elton Máximo de Macedo, que comandava a tropa durante a dispersão do protesto, na altura da Ponte Duarte Coelho, foi punido com 30 dias de detenção. A decisão foi publicada na semana passada.
A investigação da Corregedoria concluiu que o PM estava "em circunstâncias e posição que tornavam totalmente viável e possível a visualização e, consequente, identificação daquele policial (que atirou em Daniel), de modo que se não o fez, é porque deixou de cumprir de forma satisfatória e eficiente a sua função de comandante daquela fração de tropa". Em outras palavras, foi punido pela omissão.
A gestão do governador Paulo Câmara chegou ao fim, uma nova assumiu em 2023, mas, até hoje, o governo de Pernambuco não esclareceu quem deu a ordem para que os policiais militares avançassem contra os manifestantes no ato pacífico.
Na época, um documento interno da Polícia Militar, revelado pelo JC, mostrou que a ordem de dispersar os manifestantes teria sido dada pelo então comandante-geral da Polícia Militar de Pernambuco, Vanildo Maranhão.
Dois dias após a ação violenta da PM, o coronel foi exonerado do cargo. Ele acabou transferido para a reserva remunerada com salário-base de mais de R$ 23 mil, segundo Portal de Transparência. Vanildo nunca veio a público dar sua versão sobre o caso.
O então secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, também foi exonerado pelo governador Paulo Câmara quase uma semana depois. Atualmente, Pádua é o superintendente regional da Polícia Federal em Pernambuco.