O isolamento causado pelo coronavírus e uma animação infantil podem ter dado início a uma das maiores disputas da indústria cinematográfica dos anos recentes. Vamos lá: com o fechamento das salas de cinema ao redor do mundo, as principais estreias foram adiadas em um verdadeiro cenário especulativo sobre quando realmente poderiam acontecer de fato. A Warner, por exemplo, parece ser mais otimista e acredita que poderá estrear Mulher-Maravilha 1984 em agosto. Mas a grande maioria dos grandes estúdio moveu seus lançamentos para o final do ano e até para 2021.
Nesse cenário, a Universal fez uma aposta: decidiu lançar Trolls 2, sequência da animação da Dreamworks, diretamente para aluguel via streaming. O resultado surpreendeu seus executivos, que agora vêm declarando que os cinemas devem deixar de ser uma prioridade quando a reabertura acontecer. Em três semanas, o filme fez US$ 100 milhões nos Estados Unidos, enquanto o original fez US$ 154 milhões no mesmo período. Mas, para os cofres do estúdio, esse novo lançamento é mais lucrativo. Isso porque ao ser lançado nas salas de cinema, seus produtores recebem entre 50% e 55% dos lucros, já no lançamento direto em vídeo sob demanda, o embolso chega em 80%.
Até aí, tudo bem, foi uma alternativa encontrada e bem sucedida para lidar com esses tempos complicados. Outros estúdios também farão o mesmo durante esse período, como a Warner com sua nova animação do universo Scooby-Doo e a Disney com Artemis Fowl, que vai direto para sua plataforma de streaming. Mas quando Jeff Shell, CEO da Universal, declarou ao The Wall Street Journal que o aluguel direto em vídeo será um procedimento normal de lançamento, o calo dos exibidores foi apertado. "Quando os cinemas forem reabertos, nós esperamos lançar os filmes nos dois formatos”, afirmou o executivo.
Tal declaração aponta uma mexida significativa em uma prática padrão e consolidada entre produtores/distribuidores e exibidores: a janela entre o lançamento nos cinemas e nos streamings e mídias físicas. Se nos Estados Unidos dos anos 1980, o tempo entre a exibição no cinema e o lançamento em vídeo de um filme poderia ser de seis meses a um ano, nos anos 2000, para combater a pirataria, esse espaço de tempo foi diminuindo. Hoje, são cerca de 74 dias para a chegada nos streamings e 90 para os DVDs e Blu-Rays. Agora, a Universal fala em lançamento simultâneo nos dois meios, proposta que já contava com uma certa afeição de alguns estúdios.
A rede de cinemas AMC, considerada a maior do mundo, lançou uma carta na última terça-feira, afirmando que não exibirá mais os filmes da Universal, tudo por conta das intenções reveladas pelo executivo do estúdio, de não respeitar essa janela. Ela é assinada por Adam Aron, presidente da rede e dirigida para a diretora da divisão de filmes da Universal, Donna Langley. Para Aron, os comentários feitos ao Wall Street Journal são inaceitáveis e os deixaram sem escolha. O boicote se estenderá para qualquer produtora que não respeitar as práticas das janelas de tempo para os lançamentos unilateralmente. Filmes como Velozes e Furiosos 9 e a sequência de Minions podem ser afetados.
A primeira reação veio da Organização Nacional dos Donos de Cinemas (NATO). "A Universal não tem razões para se utilizar de circunstâncias incomuns em um ambiente sem precedentes como trampolim para passar por cima dos verdadeiros lançamentos do cinema", afirmou John Fithian, presidente da organização em uma nota divulgada. Fithian ainda fala sobre a diferença da experiência de ir ao cinema, que não pode ser replicada. Ainda segundo a organização, o caso de Trolls é algo fora da normalidade por conta do período de quarentena, com milhões de famílias e crianças trancadas em casa, e não um indicativo de uma mudança significativa no consumo.
Especialistas do próprio The Wall Street Journal afirmam que os números de Trolls 2 ainda são muito incipientes para apontar qualquer mudança de paradigma. Os resultados expostos não trazem indicativos do mercado fora dos Estados Unidos. Eles apontam tratar-se de uma questão muito específica de filme para filme, não uma realidade para todos os filmes e que dificilmente substituirá a ida aos cinemas.
A Universal respondeu, afirmando que se trata de uma má-interpretação das palavras de Jeff Shell e que a NATO e a AMC estão tentando fazer uma confusão dos posicionamento e ações do estúdio. "Nós acreditamos absolutamente na experiência de ir ao cinema e não fizemos nenhuma declaração contrária. Como afirmamos mais cedo, no futuro, nós esperamos lançar nossos filmes diretamente tanto nos cinemas, como no vídeo sob demanda, quando for uma alternativa de distribuição que faça sentido", afirmou a Universal, reiterando que tem o desejo de sentar para conversar com os exibidores.
A NATO rebateu, acusando o estúdio de ter "uma tendência destrutiva de anunciar decisões que afetam os exibidores parceiros sem realmente consultar esses parceiros", classificando de infundadas as acusações do estúdio.
A novela ainda deve continuar. Nesta quarta-feira, foi a vez da rede Cineworld, segunda maior rede de cinemas dos Estados Unidos, reagir ao posicionamento da Universal. O conglomerado afirma que não exibirá filmes que não respeitem a janela de lançamento e que o estúdio age de má fé e se aproveita da situação. A briga deve prosseguir nos próximos meses e a conclusão, como uma mudança ou não no paradigma dos lançamentos, só deve chegar com a reabertura dos cinemas.