No dia 28 de junho de 1959, há exatos 51 anos, o bairro de Manhattan, em Nova York, era palco de um dos movimentos sociais mais emblemáticos da segunda metade do século 20, a Rebelião de Stonewall, em que integrantes do movimento LGBTQIA+ se manifestaram contra a ação violenta da polícia. Por isso a data foi escolhida para celebrar internacionalmente o Dia do Orgulho LGBTQIA+. Apesar de terem tido participação ativa neste e em tantos outros momentos histórica da luta pelos seus direitos, as pessoas transgêneros só passaram a ter representatividade na sigla a partir da década de 1990.
Historicamente invisibilizada ou limitada a determinados estereótipos na produção cultural ficcional, a comunidade trans é tema do novo documentário da Netflix, intitulado Revelação. A plataforma de streaming vem há um certo tempo investindo em produções protagonizadas por personagens LGBTQIA+ e perceber que entre maio e junho três dos grandes lançamentos documentais (além deste, os ótimos Atrás da Estante e Secreto e Proibido) se encaixam na busca por maior representatividade, dando voz ativa aos integrantes da comunidade, é realmente inspirador.
O número ainda baixo, se comparado a todos os anos de silenciamento, é um fato que se torna ainda mais evidente e problemático ao assistir Revelação, cuja proposta é justamente estimular um olhar crítico a certas escolhas da indústria do audiovisual.
Com produção executiva da atriz e ativista Laverne Cox (Sophia Burset em Orange Is The New Black), o documentário busca traçar um panorama da representatividade trans durante os últimos 100 anos da indústria cinematográfica e televisiva norte-americana a partir dos relatos de personalidades que trabalham no setor.
Atrizes, atores, cineastas, críticos e historiadores trans analisam filmes, seriados e programas televisivos, apontando erros e (pouquíssimos) acertos ao longo da história. A riqueza de imagens é um dos grandes trunfos da produção. É através de trechos extremamente diversos, do cinema mudo, como A Florida Enchantment ou Judith de Betúlia, até seriados contemporâneos como Pose, Crônicas de São Francisco e Transparent, que os apontamentos dos entrevistados são escancarados.
Essa perspectiva analítica é inteiramente centrada na produção de Hollywood e talvez esse seja a única falha do documentário. Para uma produção que se propõe a dar voz à uma minoria, à uma parcela da sociedade que há um século é sub-representada no cinema, faria sentido, em termos de diversidade, incluir comparações, mesmo que pontuais, com produções de outros países. Há sempre um perigoso caráter reducionista quando uma história é contada de maneira unilateral - no caso de Revelação, levando em consideração apenas a experiência norte-americana das produções mainstream.
Ainda assim é uma grande, didática e poderosa aula de história obrigatória não apenas para os cinéfilos, mas para qualquer um que goste e consuma minimamente a cultura pop.
Filmes que marcaram gerações, como O Silêncio dos Inocentes (1991), Ace Ventura (1994) ou Clube de Compras Dallas (2013), apenas para citar alguns, apresentam todos arcos narrativos decadentes para os personagens trans. São inúmeros os exemplos de obras-primas que não envelheceram bem. Isto é: a abordagem a determinados temas é datada, problemática.
Muito além de simplesmente apontar lacunas e erros grosseiros de grandes produções cinematográficas na representação destes personagens, o documentário revela os maiores e constantes estereótipos aos quais pessoas transgêneros costumam ser reduzidas. É tragicômico ouvir os especialistas falarem sobre a constante representação de mulheres trans como prostitutas assassinadas, sem qualquer contextualização social e política do porquê elas são excluídas do mercado de trabalho, e assistir dezenas de sequências de séries policiais em que a observação se confirma.
Ou ainda descobrindo que irão morrer em decorrência de uma doença causada pela medicação hormonal em seriados médicos. Se as mulheres são retratadas como vítimas, quase sempre sem a chance de tomar as rédeas de suas próprias histórias, os homens trans costumam representar personagens violentos. Ainda mais quando homens negros, o que aponta que, além da questão de gênero, é preciso perceber e problematizar também e sempre o racismo.
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Além de Laverne Cox, o ativista Chaz Bono (filho de Cher), as atriz Jen Richards (Mrs. Fletcher, Crônicas de São Francisco), Candis Cayne (Dirty Sexy Money), Angelica Ross (Pose), a cineasta Lilly Wachowski (Matrix, V de Vingança) e tantos outros compartilham corajosos e emocionantes depoimentos que mesclam histórias pessoais familiares com aguçadas observações a respeito da forma como as representações violentas e debochadas do corpo trans nas telas impactaram suas próprias percepções de si mesmos.
É duro, porém extremamente necessário perceber que nós, enquanto sociedade, reproduzimos estruturalmente esses preconceitos normalizados por décadas. Existe, o que o roteirista Tiq Milan chama de "paradoxo da representação": quanto mais as pessoas trans são vistas em papéis violentos, mais sofrem ataques, pois é o indivíduo real a quem o telespectador tem acesso, não ao personagem.
"Uma representação positiva só consegue mudar as condições de vida de pessoas trans se fizer parte de uma movimento mais amplo pela mudança social. Mudar a representação não é o objetivo, é um meio para o fim."