Música disco volta à linha de frente do pop, diante do cenário pandêmico de 2020

POTÊNCIA Entre globos espelhados, roupas brilhantes e sintetizadores, gênero musical permeia o imaginário coletivo há mais de quatro décadas
Márcio Bastos
Publicado em 26/07/2020 às 6:00
MINOGUE Kylie lança o álbum Disco em novembro. Artista que constantemente faz reverências ao ritmo e à estética setentista Foto: DIVULGAÇÃO


A explosão da disco nos anos 1970 teve um impacto para além da música, atingindo a moda, o audiovisual e o comportamento ao redor do mundo. A estética e os símbolos evocados naquele período permeiam até hoje a cultura mainstream e tem ganho um novo fôlego em 2020, com o gênero voltando à linha de frente da música pop graças a nomes como Kylie Minogue, Dua Lipa, Lady Gaga, Doja Cat, Jessie Ware, entre outras. Que esta nova onda esteja acontecendo em um momento de isolamento social e de falta de perspectiva com o futuro diz muito sobre o poder simbólico da música disco e sua associação com sentimentos de escapismo, inclusão e hedonismo.

O globo espelhado, as roupas brilhantes, as luzes de estrobo, os passos coreografados e coletivos, a boate: são muitos os símbolos que a disco conseguiu imprimir no imaginário coletivo. Canções daquela época atravessaram gerações nas vozes de Donna Summer, Diana Ross, Abba, Sylvester, Chic, Grace Jones, The Pointer Sistes, só para citar alguns.

No seu auge, elementos disco foram incorporados não só por artistas pop, mas também por nomes do rock e da cena alternativa, como Blondie, David Bowie, Queen, Rolling Stone, entre outros. É uma sonoridade que continua convocando todos para as pistas de dança, em uma interseção geracional que poucos gêneros conseguem.

Esse caráter agregador está associado à própria origem da cultura disco, que congregava latinos, negros, mulheres e LGBTs e oferecia uma espaço de visibilidade e liberação sexual que atraiu muitos e também causou a ira dos conservadores. Era um momento de desilução social, recessão econômica e do fim do sonho revolucionário da década de 1960.

Para Thiago Soares, professor de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador de cultura pop, para entender o apelo da música disco é preciso olhar justamente para o espírito do tempo e para as tensões sociais. Ele aponta que neste momento de pandemia, sem uma perspectiva segura de futuro, tem-se feito um movimento de olhar para o passado (recente ou mais remoto).

"Nesse contexto de sequestro do futuro, surge uma relação entre nostagia e a utopia. A nostalgia, o passado, como uma utopia, o futuro, possível. E por que a disco neste momento? Talvez porque ela seja o melhor lugar para se entender as entranhas do capitalismo. Ao mesmo tempo em que ela negocia com o capitalismo financeiro, com a branquitude, ela abre frentes de inclusão de outras pautas que também estão dentro do universo do capitalismo, como a dos sujeitos LGBT, negros, das mulheres, das pessoas queer. A disco permite que essas pessoas participem de uma ideia de cidadania que não está nos vieses formais, mas que se dá pela cultura, pela música, pela ideia de ser visível", reflete.

Thiago aponta que a pauta da diversidade e das micropolíticas têm ganhado força nas últimas décadas e encontram um cenário potente diante das contradições da contemporaneidade. Para ele, através das redes sociais, essas questões ganham força e passam a ditar certas questões dentro do capitalismo e retoma-se essa ideia de visibilidade para as identidades desviantes, o que pode ajudar a entender o retorno da música disco às paradas de sucesso. O pesquisador pontua ainda que diante desse contexto de desesperança, o presente parece não dar ferramentar para a inovação e, diante da estupefação, ativa-se esse imaginário nostálgico.

"A disco traz esse ideal de que todos podem entrar, mas não é bem assim. Se pensarmos o Studio 54, em Nova York, grande símbolo da pista de dança da disco music, o que se tem é um espaço elitista. No Brasil, as boates da Zona Sul não sofriam a repressão à qual os bailes de black music dos subúrbios estavam expostos. São negociações simbólicas e há perdas e ganhos neste processo", enfatiza. "O modo como a gente resgata a nostalgia na disco, como um elemento de reativação da nossa transgressão, é quase disruptivo. Porque a nostalgia geralmente tem, em si, um traço muito conservador, como se pode observar na extrema-direita, que é presa a um passado autoritário, excludente, um passado que era bom apenas para alguns."

RETORNO ÀS PISTAS

Mesmo após seu arrefecimento nos anos 1980, a disco continuou a permear a música pop e influenciou sucessos ao longo das décadas, reaparecendo em sucessos dos anos 1990, 2000 (Confessions on a Dancefloor, lançado em 2005, por Madonna, talvez seja o maior exemplo), 2010, com hits de Daft Punk e outros, e, agora, nesta nova década.

Em 2018, Madonna voltou a celebrar o ritmo e sua estética, adicionando um elemento político a ele, em God Control, do álbum Madame X, que fala sobre a necessidade de regulamentação das armas e cujo clipe aborda um massacre em uma boatem. Em 2019, Sam Smith regravou o clássico I Feel Love, imortalizado na voz de Donna Summer, e já no final do ano, Dua Lipa começou sua dominação mundial com Don't Start Now, primeiro single do disco Future Nostalgia.

Este ano, Doja Cat conquistou o primeiro lugar da parada americana com Say So, marcada por referências diretas à disco. Lady Gaga inseriu elementos do ritmo no álbum Chromatica, assim como o fez Jessie Ware no elogiado What's Your Pleasure?, e Roisín Murphy em singles como Murphy's Law.

A maioria dessa canções, vale ressaltar, foram gravadas ainda no ano passado, o que mostra uma tendência que já vinha ganhando força em contraponto à letargia e a aspectos mais sombrios que dominavam as paradas desde meados de 2016. É o caso da recém-lançada Say Something, de Kylie Minogue, artista que constantemente faz reverências ao ritmo e à estética setentista, primeira faixa de trabalho do álbum Disco, que será lançado dia 6 de novembro.

"Nós ainda precisamos sonhar e ter aquele escapismo. A canção foi escrita ano passado e nos pareceu como ideal para lançarmos primeiro, e acho que há muito espaço para a emoção dentro dela - não importa como você se sinta, se você quiser fechar seus olhos e dançar... ou chorar", disse Kylie em uma entrevista recente.

 

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