Os primeiros dias do Festival de Cinema de Gramado entregou um primeiro final de semana plural em temáticas, narrativas e abordagens dentro do panorama da produção nacional. Foram exibidos seis curtas e dois longas brasileiros, oriundos de estados como Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e o Distrito Federal, passando por retratos intimistas de luto, buscas pelo outro e por si, ternura infantil, investigações sobre as raízes sociais do país e o próprio cinema como foco. Um pontapé inicial que contemplou diferentes níveis de concretização de propostas estéticas, das mais frágeis às mais plenas.
No panorama dos curtas, a programação foi muito bem aberta com 4 Bilhões de Infinitos, mais um exemplar do potente cinema que o cineasta Marco Antônio Pereira vem desenvolvendo nos últimos anos, agora em sua terceira passagem pelo festival. O mineiro volta a filmar pessoas de sua terra, a cidade de Cordisburgo, região central de Minas Gerais, sob olhares de um cinema que adiciona doses de fantasia em pequenas histórias rurais, carregadas por um afeto tão bem filmado. Se a velhice foi o foco dessa sensibilidade em A Retirada para um Coração Bruto e um jovem casal de namorados em Teoria Sobre um Planeta Estranho, agora ele volta suas lentes para a infância e o próprio cinema enquanto algo que existe dentro das pessoas, para além do aparato técnico.
Pernambuco foi representado por Inabitável, de Enock Carvalho e Matheus Farias, que também vêm abraçando a fantasia e a ficção-científica em seu cinema. O curta é um filme de busca, a de Marilene em busca de sua filha, uma mulher trans desaparecida. A dupla articula habilidosamente diferentes camadas de tensão, das previamente arraigadas no espectador que tem alguma noção das violências e estatísticas que permeiam a vivência da população trans, assim como àquelas propostas pela encenação de suspense construída pelo filme. Tudo isso arrebatado por uma resolução corajosa e aparentemente simples, mas reveladora das perspectivas do que é viver no Brasil.
A programação de curtas ainda contou com Receita de Caranguejo, de Issis Valenzuela, delicado retrato de relação mãe e filha em uma viagem de solidificação dos afetos em meio à uma melancolia posta pelo luto. Já na seara do deboche, vem o veterano Otto Guerra, ao lado de Erica Maradona com Subsolo, animação que faz escárnio acelerado da vida fitness nas academias. No domingo, veio o primeiro dentro da seara documental, Atordoado, eu permaneço atento, de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos, carregado pelas memórias do jornalista e militante Dermi Azevedo sobre os horrores da ditadura e seus ecos no Brasil de hoje, acompanhado ainda por intervenções imagéticas que dão clima às falas. Já Blackout trouxe uma despojada história futurista que se desdobra sobre uma brilhante jovem da periferia do Rio de Janeiro.
O primeiro brasileiro foi Por Que Você Não Chora?, de Cibele Amaral, do Distrito Federal. Ele conta a história de Jéssica (Carolina Monte Rosa), uma estudante de psicologia que precisa se dividir entre o trabalho e os cuidados à irmã mais nova, enquanto lida com seu cotidiano com frieza. Em uma de suas atividades da faculdade, ela é designada para fazer um acompanhamento terapêutico de Bábara (Bárbara Paz), em uma relação que abalará a vida das duas.
O longa conta com um bom potencial quando vai se desdobrando e esticando a tensão de uma relação que precisa ser constantemente racionalizada, como uma de terapeuta-paciente. Amaral também se permite trazer construções sutilmente maneiristas do espaço, em especial com o uso de uma iluminação azulada, mas suas intenções acabam sendo sabotadas por um aspecto muito pedagógico da condução narrativa. A experiência acaba parecendo ser muito mais levada pelo tema, se esgotando em saídas frágeis.
No sábado, foi a vez do esperado Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marcos Dutra, que representou o Brasil no último Festival de Berlim. Ancorando sua trama na capital paulista onze anos após a abolição da escravidão, entremeada pela vida de uma derrocada família cafeeira e seus ex-escravos. Para contar essa história dos primeiros anos de uma cicatriz que não se fechou até hoje, a dupla opta por um tratamento bem estático, usando planos e contraplanos como indicadores de distância e um forte amparo na verbalização dramatúrgica.
É uma abordagem que funciona bem até certo ponto, principalmente quando conta com o trabalho de atrizes excelentes como Mawusi Tulani, que eleva as palavras quando bem articuladas e atenuam o caráter mais didático de algumas delas. Mas trata-se de uma faca de dois gumes, com discursos políticos que ora são bem incorporados narrativamente, porém também encontram-se em construções meramente expositivas, ainda sem conseguir evitar um tratamento repetitivo que se encerra na tragédia e culpa nesses olhares para as raízes escravocratas do Brasil.
O ponto alto do final de semana foi Um Animal Amarelo, do carioca Felipe Bragança. Assim como Todos os Mortos, ele é um filme interessado em se debruçar sobre as feridas coloniais do país e seus ecos infindáveis, mas sob uma perspectiva menos racionalizada, abraçando os signos do caos. Ele usa a figura de um frustrado diretor de cinema que pretende filmar a história de seu avô, um homem que buscou ser rico e deixou de herança para o neto um fêmur mágico e uma misteriosa criatura mística que lhe ajuda e lhe atrapalha na vida.
Mais uma vez, ao lançar essas luzes para as configurações colonialistas e violentas do Brasil, é colocada em tela um já conhecido sentimento de culpa da classe média artística do país. Mas Bragança não tenta disfarçá-lo ou buscar entender de onde vem. Ele apenas o joga em um espiral de loucura e simbolismos. Seu personagem representativo de si mesmo é colocado em diversas posições de subordinação e de se deixar levar mais do que entender algo, em uma jornada que passa por Brasil, Moçambique e Portugal.. A voz que conduz tudo é da magistral Isabél Zuaa e de sua personagem, que busca uma vingança anticolonial, enquanto o diretor é apenas uma figura perdida que tenta entender todo esse turbilhão histórico, atravessado por um arco que passa pela ambição e indiferença.