É na mistura de desejos e envolvências, raivas e desilusões, temperados com boleros, beats e violões que nasce Crua, o primeiro disco de Bella Kahun, disponível nesta sexta-feira nas plataformas digitais. Aos 19 anos, a artista de Garanhuns faz o expurgo de uma série de sentimentos que tinha acumulado, entre angústias e vontades, com um exercício que considera como doloroso, mas que ainda assim lhe rende prazer nesse ato de conseguir algo perto de uma catarse a partir do gesto artístico. “Faço música para desabafar e não sentir mais depois ter feito. Hoje, só sinto que são canções bonitas”, elabora Kahun.
Nos primeiros segundos da entrevista por telefone, fica claro esse sentimento de compensação quando Boêmia, sétima faixa do projeto, é ouvida no fundo da ligação. A canção é dona de um clipe, também lançado nesta sexta-feira e descrito como um segundo ato do conceito audiovisual do disco. “Deixa eu dar uma abaixadinha, estou acompanhando o lançamento aqui, não sei se tu viu”, ela diz empolgada. Crua marca é um importante passo de solidez para uma trajetória que carrega empecilhos motivados pelo lugar de onde ela vem e da posição que ocupa no mundo.
Aos 10 anos, Bella começa seus primeiros acordes no violão e na adolescência começa a tocar nos botecos do interior, acompanhada e apoiada pelo pai, a quem considera como “o maior músico do país”. Com essa parceria, foi alcançando alguns lugares, mas também começou a enxergar os primeiros entraves. Em 2016, pôde se apresentar em um evento menor durante o Festival de Inverno de Garanhuns, ganhando uma certa notoriedade na cidade. Dois anos depois, ela é contatada pela gravadora recifense PE Squad e passa a fazer parte do selo, pelo qual sai o Crua.
“No interior, na cidade de Dominguinhos, não dão acesso e valorização dos artistas locais. Para mim, uma mulher, da comunidade LGBT, que começou tocando em botecos, nunca me colocaram em palcos, temos dois grandes festivais e muitos artistas daqui não têm a oportunidade. Na capital, conheci a música em seu aspecto comercial, cheguei com a ilusão de que iria se abrir portas, e muitas se abriram, mas a dificuldade das pessoas abrirem os ouvidos para quem vem do interior fez com que eu pensasse em parar. Mas tô aqui”, conta Bella.
No ano passado, o Crua começa a ser construído, quando ela apresenta suas composições para o pessoal da PE Squad. O que inicialmente ia ser um EP de seis músicas foi ganhando outras dimensões, em um processo de trocas constante, em especial com Mazili, que assina a produção do disco. Bella buscava sonoridades orgânicas e, de certa forma, clássicas, incorporando influências que descobriu e que herdou de seu pai, como Nelson Gonçalves, mas passando também por texturas de R&B, brega e MPB. Para cada música, chegaram a ser feitas cerca de três versões até a escolha da final.
A parte mais incômoda do processo era o mostrar composições tão reveladoras de si para outras pessoas. Era inegável a insegurança dessa exposição, mas foi convencida pelo potencial que elas carregavam. “Foi muito ruim mostrar essas canções, são segredos e intimidades minhas. Não me senti envergonhada, mas tive um sentimento de ‘não estou segura de mostrar’. Eu não construí o Crua, eu só senti, foi um percurso de canções que conversam entre si e até hoje eu fico admirada. Foram falhas minhas, desejos, paixões e é complicado, porque eu ainda sinto elas, não da mesma forma quando criei, há algo de superação e de canções belíssimas. Mas foi uma coisa boa colocar pra fora”, explica.
A pandemia acabou complicando um pouco mais as coisas, mas conseguiram desenrolar essa criação em etapas remotas e presenciais, incluindo seus aspectos visuais e audiovisuais. Para a produção dos clipes, gravado em Garanhuns, precisou fazer alterações no roteiro, ao lado do diretor Rostand Costa, para possibilitar filmagens com poucas pessoas. Para essa produção, ela contou com artistas da cidade natal e arredores. De Brejão, veio a drag queen Talula Mayim, em performance de Alefe Passarin. Da própria Garanhuns, ela contou com MV King (maquiagem), Vinn Amara (figurino), Taís Marino do estúdio Tererêtata (Cabelo), Giovani Fraga, da loja Ruínas (Jóias) e Nathalia Tenório (fotografia, still e making off).
Em um momento em que ela possa levar o trabalho para os palcos, ela quer trazer artistas de sua terra para formar sua banda, aqueles com que se apresentou nos botecos e acompanharam seus caminhos. Uma escolha que reforça seu grito por espaços para artistas como ela, chegando a reiterar essa sua posição no próprio projeto com a faixa Verso Incerto, uma declamação sobre os lugares que alcançou e um recado para quem duvidou. Essa banda deve acompanhá-la em apresentações tomadas pelo vermelho, cor que ama e canaliza bem visualmente as paixões e intensidades desse trabalho.
"Gosto muito do vermelho, pode imaginar um show vermelho! E gosto muito de metais, quero ter uma banda orgânica, quero também Talula encenando comigo no palco. Quero dar esse espaço, levar comigo essas pessoas para o palco, do interior. Quando os shows começarem, não vai estar sendo sou eu ali, vou estar levantando as pessoas que estiveram comigo, isso para mim é mais importante do que fazer um show em si", conclui Bella.