Pensar o cinema da pernambucana Déa Ferraz é pensar o dispositivo. Já são três dos seus filmes que operam sobre formulações pré-estabelecidas pela ação da câmera na construção do espaço cênico: Câmara de Espelhos (2016), Modo de Produção (2019) e AGORA (2020), seu mais novo documentário.
Por mais sugestivo que pareça, trata-se de uma característica não limitadora. Em todos os três trabalhos, Déa Ferraz parece tensionar até onde esse dispositivo consegue produzir imagens dos temas abordados.
A partir disso, surgiu no seu cinema a ideia de “caixa”, um espaço fechado e enclausurador, em que a câmera, uma intrusa, vai capturar os registros do que se passa.
Em Câmara de Espelhos (2016), esse elemento é externo – a cineasta construiu literalmente um ambiente fechado para a realização do filme, que investiga as raízes machistas de homens na Região Metropolitana do Recife. Um processo de fora para dentro, mas que já se apresentava como um filme-dispositivo interessado em pensar o formato.
Leia também: Documentário recupera gravações policiais usadas para denunciar homens que faziam sexo em banheiros públicos
Leia também: Clipe de Flaira Ferro sobre orgasmo feminino é atacado e elogiado
Em procedimento contrário, nasceu Modo de Produção, filmado quase todo dentro de uma pequena sala do Sindicato de Trabalhadores de Ipojuca. A “caixa” se manifesta como uma construção prévia a sua ideia, junto com todas as significações políticas que já habitam a concepção do espaço. Coube a ela se aprisionar no ambiente e ligar a câmera.
O que se passa depois é o que torna a assinatura de Déa Ferraz algo autoral no cinema pernambucano. Em ambos os filmes, há a ideia de uma desconstrução das bases do documentário-dispositivo – o que pode ser explicado pela não canonização de paradigmas presentes no cinema de Frederick Wiseman, como ela contou em entrevista ao JC, na época do lançamento de Modo de Produção.
Déa Ferraz busca evidenciar seu corpo, voz e presença no espaço de gravação como um elemento intrínseco ao que está sendo capturado. Em certo momento de AGORA, por exemplo, podemos ver a equipe de filmagem quando a câmera orbita pela sala.
Há um interesse em desorganizar a imagem posta e preservar o seu conteúdo – o que implica também em expandir suas significações. Neste sentido, seu cinema se aproxima de uma ideia de “opacidade”, tão defendida pelo teórico francês Édouard Glissant.
Leia também: Wanda e a genialidade de Barbara Loden completam 50 anos
“Opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes”, ele escreveu em Poétique de la Relation, texto de 1990.
Não se trata então de pensar em sistemas dualísticos a serem desvelados, mas de entregar um material em circuito-aberto. É uma ideia quase oposta ao dispositivismo clássico da captura arquivística dos materiais. Em AGORA, Déa Ferraz irá nos propor fabulações.
Passado 10 minutos de filme, ela evidenciará sua presença. É a sua voz que atiça as performances corporais dos convidados presentes. De forma resumida, ela pede para que eles performem o seus respectivos corpos a partir das suas impressões sobre a atual situação do Brasil e uma ideia de futuro.
Os performers se posicionam de frente ao dispositivo, em um fundo preto, iluminado por uma pequena luz. O que torna ali um espaço “fechado” como em seus outros filmes, à priori, é o posicionamento da câmera, que ao passar do tempo vai abrindo mão dessa ideia.
"AGORA" é também o grito que ativa uma nova angulação brusca da câmera para capturar alguns momentos da ação dos convidados. São esses ângulos que nos oferecem gradativamente novas interpretações das performances.
É um sistema que vai sendo desconstruído dentro da própria ideia do filme. As performances se intensificam corporalmente enquanto a câmera fixa se revela limitada e limitadora. É daí que surge a opacidade na movimentação inquieta dos corpos que se escondem na escuridão do espaço, e nos gritos (ou batuques) que escapam das significações presentes no quadro.
Quase como uma síncope cinematográfica, AGORA rejeita paulatinamente a posição da câmera como elemento organizador, mesmo se auto-indentificando um filme-dispositivo. Em detrimento, nos entrega a corporalidade transgressora na fala e arte de nomes como Dante Olivier, Flávia Pinheiro, Joy Thamires, Kildery Iara, Lívia Falcão, Lucas dos Prazeres e Orun Santana.
O dispositivo os reverencia e passa a se posicionar de forma que suas expressões se evidenciem no plano. Déa Ferraz cria o modelo, estabelece e filma a sua combustão.
AGORA será exibido online na mostra Novos Olhares, do 9º Olhar de Cinema. As sessões ocorrerão nesta sexta (09) e na terça (13), no site www.olhardecinema.com.br, com ingressos a R$ 5.
AGORA é também uma realização das empresas pernambucanas Alumia Conteúdo, Ateliê Produções, Janela Gestão de Projetos e Parêa Filmes, com distribuição da Ventana Filmes. Um filme feito sem verba de editais.