Um pai morre. Ele é negro, professor de literatura em uma escola pública de uma das cidades mais brancas do país e tem 50 anos. O nome dele é Henrique e ele foi assassinado pela Polícia Militar em Porto Alegre, após uma terrível abordagem quando voltava para casa depois do trabalho. Esse pai morre e seu filho, Pedro, de apenas 22 anos, precisa enfrentar todos os vazios que de repente são escancarados, todas as falhas de uma relação que nunca foi muito linear.
Para lidar com essa perda, ele escreve a história desse pai e é partir desse olhar extremamente íntimo que é construída a narrativa do novo romance de Jeferson Tenório, O Avesso da Pele (192 pgs., R$ 59,90 o livro físico e R$ 29,90 o e-book). A decisão de falar de Henrique vem alguns dias após o enterro, quando Pedro volta ao apartamento do pai e se depara com tudo que ele deixou materialmente.
"Há nos objetos memórias de você, mas parece que tudo que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio, esses mesmos objetos me contam sobre você, É com eles que te invento e te recupero."
O livro é um dos lançamentos nacionais recentes e muito aguardado da Companhia das Letras, marcando também a estreia do autor na editora. Jeferson Tenório é carioca radicado em Porto Alegre e este é seu terceiro romance, que chega às livrarias sete anos após O Beijo na Parede e dois anos após Estela Sem Deus.
Em O Avesso da Pele, Jeferson fez uma curiosa escolha de escrever em segunda pessoa: Pedro se dirige quase que o tempo inteiro a Henrique.
O uso constante do "você" não soaria estranho se não fosse pela forma tão direta e quase cirúrgica que o filho usa para descrever os fatos mais marcantes da vida do pai. A descoberta da sexualidade, os primeiros empregos, o despertar para a própria negritude, o início do namoro com a mãe, Martha, e as incontáveis (muitas vezes violentas) brigas que acarretaram na separação quando Pedro tinha cerca de um ano, tudo é narrado com uma riqueza de detalhes que de início incomoda.
Como pode um filho saber tantos detalhes dos momentos mais particulares do pai? Mas o desconforto é quase hipnótico e a leitura flui, por mais dolorosa que seja. Compreendemos que essa forma narrativa é muito mais uma necessidade do que uma escolha de Pedro, pois ele tem que reconhecer o pai para seguir em frente. "Preciso arrancar a tua ausência do meu corpo e transformá-la em vida (...) Não acho que devemos lidar com a lógica dos fatos. Prefiro uma verdade inventada, capaz de me por de pé."
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As frases são sempre curtas e essa escolha estilística causa uma expectativa que algo mais sempre está por vir. Essa apreensão é, na verdade, a tensão cotidiana do racismo, inserido em todas as linhas e entrelinhas de O Avesso da Pele com maturidade e naturalidade, e das falhas do sistema educacional brasileiro.
A narrativa de Jeferson Tenório é cheia de surpresas, potente e carrega consigo um incômodo necessário para tratar das questões tão entranhadas na sociedade brasileira. Henrique, que tanto tentou ensinar ao filho que é preciso estar atento e "preservar o avesso (...), aquilo que ninguém vê" antes que a cor da pele determine "nosso modo de estar no mundo", morreu antes de poder ser o narrador de sua própria existência.