Há atores que quando morrem, parecem levar consigo uma espécie de personagem-mito os quais foram responsáveis por trazer à vida, sendo continuados por outras faces depois. O crítico e teórico francês André Bazin via isso em figuras como Humphrey Bogart, Jean Gabin e James Dean. E certamente há alguma medida disso no escocês Sean Connery, que faleceu neste sábado (31), aos 90 anos. Falar dessa ideia de um personagem-mito e Sean Connery é falar de James Bond, que de tão bem estabelecido pelo ator ainda nos 1960, já se encontra em quarto rosto quase 60 anos depois.
O agente secreto que preferia seu martini mexido, não batido, foi responsável pelo impulsionamento de um imaginário que abrigaria um personagem-tipo visitado e revisitado ao longo dos anos, moldando um gênero e até uma certa percepção sobre o que era um homem britânico. Aquela personalidade que mistura canastrice com um senso de lealdade e elegância com vigor físico, a partir do trabalho de Connery, se tornou seminal para a persona do espião e para o gênero em si, incluindo aqui suas atualizações e paródias.
E Connery, com a versatilidade de um homem que já passou pela marinha, pelos campos de futebol e pelo fisiculturismo, não ficou preso à essa figura. Ainda nos anos 1960, poucos anos depois da estreia como 007 em O Satânico Dr. No, foi escalado por Hitchcock para viver Mark Rutland em Marnie, Confissões de uma Ladra, ali ganhando traços mais ambíguos, com uma certa vilanidade e agressividade. Na mesma década, seria ainda requisitado por nomes como Sidney Lumet, com quem trabalharia recorrentemente em títulos como A Colina dos Homens Perdidos, Assassinato no Expresso do Oriente e Até os Deuses Erram.
Com a idade, chegou também um outro personagem-mito para Connery, o do sábio mentor, que aumentaria ainda mais a dimensão de sua pessoa na cultura pop. Nesse momento, orientou e iluminou personagens como Highlander e Indiana Jones. Também o fez na luta contra Al Capone no clássico Os Intocáveis, de Brian de Palma, que lhe rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante pelo papel do policial veterano Jimmy Malone.
Já um lado mais ambíguo dessa figura veterana é apresentada em Caçada ao Outubro Vermelho, adaptação do best-seller de Tom Clancy, em que Connery vive um militar soviético sobre o qual ronda dúvidas se ele é um desertor ou um maníaco que pretende realizar um ataque nuclear. Sob a direção de Jean Jacques-Annaud, pôde viver uma de suas mais marcantes versões dessa figura, interpretando o padre William Baskerville em O Nome da Rosa, adaptação do clássico de Umberto Eco, misturando seu lado agente secreto e sábio mentor para investigar uma misteriosa onda de mortes em um monastério medieval. Sua despedida das telas foi no pouco cativante A Liga Extraordinária, mas à essa altura, Connery não devia mais nada ao cinema.
A morte de Sean Connery reverberou pelo mundo, diante do impacto de seu trabalho. Daniel Craig, atual 007, lamentou o falecimento em sua conta no Instagram. “Sean Connery morreu aos 90 anos. Ele foi o primeiro ator a interpretar James Bond nas telonas em O Satânico Dr. No e pronunciou essas palavras inesquecíveis: ‘O nome é Bond, James Bond’. Ele foi e sempre será lembrado como o primeiro 007”, declarou.
Michael G. Wilson e Barbara Broccoli, atuais produtores da franquia, também prestaram sua homenagem. Michael é enteado e Barbara é filha de Albert R. Broccoli, produtor original dos filmes 007. “Estamos devastados com a notícia do falecimento do sr. Sean Connery (...) Ele revolucionou o mundo com seu retrato corajoso e espirituoso do agente secreto sexy e carismático. Ele é, sem dúvida, o grande responsável pelo sucesso da série de filmes e seremos eternamente gratos a ele”, afirmaram. Nomes como Viola Davis, Arnold Schwarzenegger, George Lucas, Robert De Niro e Stephen King também lamentaram publicamente.
No Brasil, o dublador Marcio Seixas, que deu voz à Connery nas versões brasileiras dos 007, publicou um vídeo em homenagem ao ator. “Adeus, meu escocês adorável. Não sei quantas vezes na minha vida de dublador eu disse ‘meu nome é Bond, James Bond. Onde quer que você esteja, saiba do meu orgulho de ter minha voz aliada a tua imagem. Siga o teu caminho em paz”, declarou.
Já o time do Flamengo colocará o jogador Everton Ribeiro com a camisa 007 na partida contra o São Paulo, realizada neste domingo. O cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho também se despediu do ator, publicando uma imagem de Connery no Festival de Cannes, em 1965. “Revi 9 Bonds durante essa pandemia. E todos com ele. Obrigado”, escreveu Kleber.