Entre 2008 e 2018, houve momentos em que O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau eram "apenas" palavras, que começaram a guiar o que seriam os três longas de ficção do recifense Kleber Mendonça Filho, lançados em 2012, 2016 e 2019 respectivamente. De certa forma, uma espécie de essência dramática desses textos é conservada tanto nas filmagens, quanto nas montagens, mas outros caminhos também são tomados na sua articulação em imagem e som. Essa conservação e mudança são dois aspectos reveladores do processo criativo de um cineasta, sobretudo um fortemente autoral. E essas revelações são uma das principais propostas da publicação de Três Roteiros, sob edição da Companhia das Letras e disponível para venda a partir da próxima segunda-feira (09).
O livro reúne as últimas versões dos roteiros dos três filmes antes de serem rodados. Eles são acompanhados de fotos dos bastidores das produções e cenas, além de um texto de apresentação do próprio Kleber e outro de Ismail Xavier, um dos maiores teóricos e professores de cinema do Brasil.
Xavier traz cativantes observações sobre o que pode dizer a leitura de um roteiro sobre o filme que ele gera e sobre quem faz esse filme. "Ismail é uma das maiores referências para quem trabalha com cinema no Brasil, seja fazendo, observando, escrevendo. É uma pessoa que tem mostrado uma compreensão muito dos meus filmes, lembro até hoje de considerações que ele fez sobre O Som ao Redor que ele fez em um debate na USP. Quando o nome dele foi sugerido, se tornou logo a primeira escolha", relata Kleber.
Tanto o texto de Ismail quanto o do diretor ressaltam o diferencial da experiência de ter acesso a roteiros que não são inteiramente os que estão nos filmes, como se costuma publicar, preservando as diferenças entre o planejado e o levado à tela. Uma oportunidade para se conhecer outros finais e outros começos e também pensar nas motivações das alterações. Questões de ritmo, trabalhos dos atores, orçamento e até mudanças no estado de espírito dos realizadores entram nesse jogo, dando uma ideia do que é fazer um filme.
"Para alguém que se interessa pela ideia do cinema, é muito mais interessante tentar entender aonde o texto original estava e aonde o filme ficou. Acho muito mais interessante um leitor que gosta e tem uma relação com Aquarius ler um final que não foi filmado, que eu pessoalmente não acho ruim, mas que não era mais o filme. Eu não explico cada decisão que me levou a não fazer aquela versão do roteiro, acho interessante o leitor estabelecer uma relação de mistério, 'por que isso terminou assim, se tava no roteiro de outro jeito?'. Algumas dessas perguntas eu nem teria resposta", explica Mendonça.
E nesse olhar texto-filme, a sensação é que boa parte das mudanças nos roteiros de Kleber são mais de enxugamento do que de alteração nos rumos das cenas e histórias. Os finais e começos de O Som ao Redor, Aquarius e, em menor grau, Bacurau possuem situações omitidas que não alteram em profundidade o desenrolar narrativo como um todo, mas dão novos tons, mais misteriosos ou abertos. São supressões que, como já destacado, encontram motivações estéticas, mas também financeiras, de "responsabilidade fiscal", como aponta o diretor. "Quando é preciso, fazemos de tudo para que essas alterações não sejam ruins para o filme. O roteiro precisa ficar menos, mas também precisa ficar mais forte", afirma o cineasta.
Já no aspecto mais pragmático da construção desses textos, Kleber tem um processo de criação mais livre. Ele se afasta dos manuais de roteiros norte-americanos, em suas recomendações de escritas quase que absolutamente telegráficas e de que estejam ali apenas palavras que podem ser materialmente filmadas. Ao descrever uma festa, ele não se prende só em ações e diálogos, mas se permite pontuar qual o clima do evento e perfis de seus personagens.
Ele diz também não ser muito chegado em esquematizações gráficas propostas pelo manuais, com quadros, escaletas e outros artifícios. Também é constante sua vontade de já estar se pensando em imagens, destacando enquadramentos, movimentos, o que evitar e também sensações, muitas vezes acompanhados de um "atenção". Nesse sentido, o simples descer da moto de um rapaz leva a recomendação de que a imagem não contenha "os apelos sensuais de publicidade de motocicleta".
"Eu escrevo um roteiro e releio toda semana, para ter uma sensação de ritmo, interesse e desenvolvimento da ideia, de um drama ou de um personagem. Isso me dá uma visão clara do que estou escrevendo. Esses gráficos e formas matemáticas são estranhos para mim. Tento só manter um contato constante e íntimo com o material. Há também uma preocupação em que meus amigos e parceiros de equipe entendam o filme e me ajudem também a entender. O roteiro não deve ser um documento chato, projeto de um filme, tem que ser bom de ler tranquilamente, ele fica em algum lugar entre a peça e o romance", elabora Kleber.
A publicação não deixa de ser também um documento sobre uma década tão rica e única na produção cinematográfica do país. O poder do arquivo sempre foi um interesse muito claro no trabalho do cineasta. Nos agradecimentos, há uma dedicatória para a Cinemateca Brasileira, o maior acervo relacionado ao audiovisual da América Latina, vivendo atualmente uma crise histórica que põe em risco os milhares de filmes, cartazes e outros documentos tão caros à memória do país.
"É muito triste observar esse desrespeito pelo qual passa a nossa maior central de acervos do audiovisual, que vai além do cinema narrativo e artístico, passando por imagens de TV e documentários que falam sobre nossa cultura. Esse livro passa a ser um documento e foi desenhado para ser uma fonte de informações sobre alguns filmes que já tem um espaço na nossa cultura. Fico feliz de ter essa singela dedicatória à Cinemateca. O lançamento marca um momento no tempo e esse momento é infelizmente um de muita preocupação, onde ela deixa de ser um arquivo importantíssimo e, pelo menos esse ano, passa a ser um armazém", conclui Kleber.