Uma vida em cartas: livro reúne correspondência completa de Clarice Lispector

Todas as Cartas, da editora Rocco, mostra aspectos da autora que nem sempre aparecem em seus livros através da correspondência enviadas às irmãs, familiares e grandes amigos, como Lygia Fagundes Telles, Fernando Sabino, Rubem Braga, Nélida Piñon e João Cabral de Melo Neto
Valentine Herold
Publicado em 10/12/2020 às 7:00
Clarice Lispector, em clique nos anos 1960 Foto: ROCCO/DIVULGAÇÃO


Assim como ler um diário, mergulhar nas cartas de alguém é acessar uma intimidade que dificilmente seria alcançada de outra maneira. Através delas, nos são revelados maneirismos de linguagem, apelidos, preocupações e conquistas pessoais. Volta e meia trocas de correspondências de escritores são disponibilizadas para o grande público e é sempre com muito entusiasmo que elas são recebidas. Não poderia ter sido diferente quando a Rocco anunciou que lançaria este ano um volume único com toda a correspondência ativa (àquela que é enviada e não a recebida) de Clarice Lispector.

Todas as Cartas (864 pgs., R$ 119,90) chegou às livrarias no último mês de setembro reunindo não apenas escritos que já haviam sido revelados em Correspondências (2002) e Minhas Queridas (2007), como cerca de 50 novas cartas e 500 notas sobre contextos e informações adicionais, escritas pela biógrafa Teresa Monteiro. O livro se consolida como o grande lançamento das comemorações do centenário da autora, celebrado nesta quinta-feira (10).

Organizada por décadas - de 1940 a 1970 - Todas as Cartas teve pesquisa da jornalista Larissa Vaz, que passou dois anos entre buscas em arquivos públicos e privados (como os do do filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente; de Mafalda Verissimo, viúva de Erico; de Olga Borelli, grande amiga de Clarice Lispector e também do escritor pernambucano Augusto Ferraz).

"Fora as negociação com os acervos, foi um trabalho muito silencioso. Ao mesmo tempo, era como estar na companhia constante de Clarice, ouvindo – lendo – suas palavras, acompanhando sua vida. Foi um processo muito enriquecedor, bonito, espantoso e, por vezes, difícil', conta. "Sempre acessamos novas camadas de informação através da correspondência de um autor, pois seu conteúdo não foi originalmente pensado para ser publicado. Acredito que o contato com este material aproxima o leitor do ser humano por trás da figura pública."

Além das cartas enviadas às irmãs Tania e Elisa, destaca-se no livro a correspondência de Clarice com amigos escritores, como Lygia Fagundes Telles, Fernando Sabino, Rubem Braga, Nélida Piñon. Dentre o material inédito se encontram nove cartas enviadas ao poeta, amigo e conterrâneo João Cabral de Melo Neto, cujo centenário também foi celebrado este ano.

Percebemos, em todas elas, uma Clarice extremamente carinhosa com os seus, dotada de senso de humor mas também carente do contato de familiares e amigos, pedindo por respostas e mais notícias, principalmente com as irmãs.

A troca de cartas entre elas é extensa e em Todas as Cartas há um lote inédito do final dos anos 50 que não havia sido publicado em Minhas Queridas. Com elas Clarice dividia questões domésticas do cotidiano, preocupações com os filhos e até - mesmo que muito discreta e en passant - desavenças do casamento.

Muitas das missivas datam do período de cerca de 15 anos que a autora viveu fora do Brasil devido à atividade diplomática do ex-marido Maury Gurgel Valente, com quem foi casada entre 1943 e 1959.
Para os fãs da autora, é uma alegria perceber que seu legado vai além de sua obra literária. Assim como em seus romances, contos e suas crônicas, as cartas revelam de certa maneira o que a escritora , antropóloga e leitora ávida de Clarice, Fátima Quintas, chama de “estilo e exaltação do mistério da existência” clariciano.

"O estilo é único, singular e ousado. Em momento algum recuou na forma de escrever, esteve sempre abraçada com a escrita como se a palavra representasse o que há de mais valioso na comunicação humana. Há uma sintonia musical e, ao mesmo tempo, uma maneira absolutamente pessoal de expressar-se", aponta.

Outro espaço onde leitores e pesquisadores podem encontrar cartas (além de inúmeras fotografias, bibliografia comentada, textos, vídeos e artigos) de Clarice Lispector é o site bilíngue Hora de Clarice, projeto lançado em 2011 pelo Instituto Moreira Salles e repaginado agora na ocasião do centenário. A coordenação é do consultor de literatura do IMS, Eucanaã Ferraz. Ele conta que as grandes novidades do site são a navegação facilitada e a área para pesquisa cruzada. Agora é possível filtrar as buscas sobre a vida e obra de Clarice a partir de temas, datas, títulos de livros etc...

"A melhor maneira de definir sue legado é justamente não definindo-o", aponta Eucanãã. "É deixar que ele aconteça, que ele seja, esteja. A melhor coisa fazer é ler seus livros. Vão ler seu livro e no silêncio. Depois pesquisa-se sobre as obras, sobre ela, mas antes de tudo é preciso continuar sempre lendo Clarice Lispector."

Confira trecho de carta enviada a João Cabral de Melo Neto, em 1948:

"Há tanto tempo recebi sua carta e seu belo livro - não respondi até agora por questões de saúde. Mas o livro foi lido e admirado e várias coisas relidas. Que "limpeza" de palavras! Nenhuma delas apodrecerá nem se gastará com o uso. Acho que você consegue o que quer. Apesar d se sentir a poeira "purificada", não s sente o trabalho de purificação. e que alegria, de fato, em ler poesia ou prosa sem "achados" (...) É uma pena que a Suíça seja longe da Espanha - você poderia me ajudar mito: estou quase parada no trabalho, e é coisa + séria do que desânimo (...)"

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