As imagens de duas crianças indígenas expostas em uma mostra sobre a história brasileira na cidade de São Paulo causaram um impacto profundo em Micheliny Verunschk. Não era a primeira vez que a escritora e historiadora pernambucana via aquelas litogravuras, muito reproduzidas ao longo dos anos, mas se deparar com os retratos em grande dimensão e a história por trás deles despertou nela um incômodo que deu início a uma vasta pesquisa para resgatar, através de documentos históricos e da fabulação, a humanidade daquelas figuras. Esse processo resultou no recém-lançado livro O Som do Rugido da Onça (Companhia das Letras, 168 páginas, R$ 54,90).
Ao investigar os acontecimentos por trás daqueles retratos, a autora deu de cara com um problema histórico do Brasil: o extermínio e apagamento dos povos indígenas. A menina e o menino representados nas obras, identificados, respectivamente, como Miranha e Juri (denominação das etnias indígenas às quais pertenciam), foram retirados à força de suas terras e suas culturas e levados à Europa, onde eram apresentados como atrações exóticas na corte.
Os dois foram tirados do Brasil pelos naturalistas e exploradores alemães von Spix e von Martius, que chegaram ao Brasil em 1817, pouco depois de Portugal abrir os portos da então colônia para as nações amigas, integrando a maior expedição científica de exploração da fauna e flora brasileiras até hoje. Os europeus passaram três anos e percorreram 10 mil quilômetros, retornando à Alemanha com plantas, animais e seres humanos. Ao término da travessia no Atlântico, das oito crianças indígenas, apenas duas sobreviveram, sendo rebatizadas como Isabella e Johannes. Eles tinham entre 12 e 14 anos e faleceram poucos meses após chegarem à Europa.
"Até descobrir o que aquelas imagens me causavam, a razão de me perturbarem, e começar o processo de escrita, visitei muitas vezes a exposição — e continuei a visitar, durante e depois de terminar o livro — e ia direto para aquelas obras. Comecei a pesquisar sobre aquelas crianças e encontrei pouca coisa no Brasil, como um livro da professora Karen Macknow Lisboa. Como parte do livro se passa em Munique, eu precisava de detalhes da cidade que a pesquisa não me dava. Lancei um apelo nas minhas redes sociais para quem pudesse me ajudar e uma amiga que mora lá começou a me mandar material. Em Munique há um grupo de estudos decoloniais que fez um documento, o mais completo que encontrei, sobre essas crianças", conta a autora.
ONTEM É HOJE
Tendo como base esse material histórico, Micheliny Verunschk desenvolve uma história que busca imaginar quem eram aquelas crianças, seus passados e suas subjetividades diante do brutal desenraizamento que sofreram. Assim, a menina ganha o nome de Iñe-e e sua jornada encadeia diferentes planos temporais no livro. Como já é característico do projeto narrativo da escritora, os tempos se misturam em O Som do Rugido da Onça: passado, presente e futuro misturam-se sem rupturas.
Da vida de Iñe-e com seu povo às passagens na Europa, a autora insere ainda questões contemporâneas através da personagem Josefa, que, que nem ela, vai atrás da história das crianças indígenas após se deparar com elas em uma exposição. Eventos como o assassinato da vereadora Marielle Franco, falas do então deputado Jair Bolsonaro e menção à pandemia são inseridas dentro de um contexto que mostra que, no Brasil, as feridas centenárias deixadas pela colonização continuam abertas.
Essas várias temporalidades são permeadas também por uma visão que incorpora os vocabulários de nações indígenas e mergulha na cosmologia dos povos originários. Da menina aos seus captores, passando por um rio e uma onça-entidade, os pontos de vista narrativos são múltiplos e convidam o leitor para uma jornada poética intensa que busca fugir da visão eurocêntrica que ainda hoje é o modelo estabelecido no Brasil. História, política, natureza e metafísica misturam-se em uma fabulação sobre aqueles que tiveram suas trajetórias negadas.
"Esse apagamento que as crianças — e tantas outras pessoas antes e depois delas — sofreram, tendo negados sua terra, suas culturas, seus nomes, mexeu muito comigo. E é uma violência que acontece até hoje. Essas crianças não falavam português, não falavam uma a língua da outra e nem o alemão. É um silenciamento profundo que reflete também o silenciamento de várias nações indígenas ao longo da nossa história. Por isso, este trabalho é atravessado pela questão da linguagem, da palavra", explica Micheliny.