Há um resto de concreto, que um dia já foi algo, mas que agora, abandonado na praia, parece ruína de maresia, soterrando na areia, tapando a vista para um mar verde. A fotografia está na capa de "Verão", livro de contos do escritor Nivaldo Tenório, editado pela Cepe e em lançamento nesta sexta-feira (11), das 17h30 às 19h, na Livraria Jaqueira do bairro que lhe dá nome. A imagem adianta que a estação, embora com sol, não é apenas solar. Onde há veraneio há insolação.
Outros verões ambientam os dez contos reunidos na obra do contista garanhuense, autor também de "Dias de Febre na Cabeça" (2014) e "Ninguém Detém a Noite" (2017), ambos lançados pela Confraria do Vento. O calor é metáfora para os incômodos que ele nos faz saber e testemunhar: uma queimadura por alta exposição solar, uma alergia, uma doença, a morte; um trabalho morboso, um quarto sem cortina, um jardim que exige, uma espera que é sempre espera.
Mas a escrita de Nivaldo Tenório é poética. Amacia a dureza de realidades insalubres, desenganadas, desgastadas. São tragédias (ou minitragédias) de cotidianos, que nos ocorrem no percurso da vida, narradas com o peso que têm, sem sentimentalismo.
Ele, aliás, considera que "o conto tem mais relação com a poesia do que com o romance". E explica: "Exige um leitor mais sofisticado, disposto a participar do processo criativo — precisa de um leitor com a mão na pena. Isso me fascina muito no conto, porque não me interessa apenas o registro de uma história, me interessa todas as possibilidades e potenciais presentes nessa história".
Fascina também a Nivaldo aquele franzido na testa que a gente faz quando termina a leitura de um conto com a sensação de que perdeu algo na narrativa — ou com o constrangimento ou a intriga de quem não alcançou o que o contista camuflou.
"Eu gosto do não dito e de explorar todas as camadas", diz ele, que cita sua experiência como leitor da contista neozelandesa Katherine Mansfield — "Ficava com uma sensação de como se eu tivesse feito uma leitura apressada, que alguma coisa me escapou. Quando a gente escreve e dá essa sensação, o conto teve êxito".
Digo-lhe que 'Verão', conto que dá nome ao livro, tem potencialmente essa capacidade de fazer voltar as páginas.
A escrita de Nivaldo Tenório é, além de poética, sofisticada e engenhosa, feita com muitas camadas. O texto vai se revelando como um fluxo — muito bem construído, direcionado — de variados tempos e vozes. É sutil, pelo não dito. Aloca certa história na ditadura militar sem jamais citá-la. Interessa o sentimento, o comportamento, o que o regime provocou.
"Quando eu escrevo, aquilo com que eu mais me preocupo é criar uma atmosfera. Em Bergman [o diretor de cinema sueco Ingmar Bergman], da 'Trilogia do Silêncio', a coisa que eu mais gosto é a atmosfera que ele constrói. Quando a gente traz para a literatura, temos, além da criação da atmosfera, uma história. Recorro ao [escritor Ricardo] Piglia, nas 'Teses sobre o Contos': o conto tem duas histórias, uma secreta e uma que aparece na superfície. A minha maior preocupação é com a impressão, não é exatamente com o enredo, nem com o que está sendo dito. Estou sempre interessado em criar uma atmosfera."
O conto que intitula o livro se afina com a pandemia que a gente vive, sem ser uma obra sobre esta crise de saúde. O livro, aliás, foi escrito há quatro anos. Ele recorre a problemas sanitários já superados, porque doenças o interessam enquanto substância para suas histórias. Gosta de explorar "a dificuldade que os seres humanos têm de lidar com a realidade", fala. E é por isso que finitude é um assunto que costura os textos — se não todos, a maioria; especialmente 'Tsunami', 'O Jardim de Laura' e 'Domenico'.
Até em 'Míchkin', conto que destoa dos demais, com algo cômico — na intenção de dois rapazes mórmons tentando evangelizar um garoto "que discute detalhes de 'Senhor dos Anéis' e 'Harry Potter' com a mesma seriedade dos ambientalistas preocupados com a Amazônia" —, o confronto com a realidade se coloca, no quanto a gente recorre a fantasias. Ou a solares veraneios.