Morando na França há 30 anos, o músico e ator recifense Augusto de Alencar, 48, voltou a Pernambuco e caminhou, a pé, cerca de 124 quilômetros para apresentar uma mistura de contação de histórias e teatro a comunidades e assentamentos rurais localizados na Zona da Mata de Pernambuco.
Entre 18 e 26 de fevereiro, o projeto "Via dos Anjos" passou pelos municípios de Tracunhaém, Nazaré da Mata, Carpina e Paudalho - incluindo também o distrito de Guadalajara - para levar arte, reflexões e ensinamentos. Neste sábado (12), ele encerrará a programação com apresentação no Centro de Capoeira São Salomão, na Várzea, no Recife.
A experiência da caminhada não é nova para o artista, que costuma realizar longos percursos na Europa. A sua apresentação conta justamente os melhores acontecimentos das suas viagens, com causos, curiosidades e aprendizados que ganhou na vida. O fio condutor da história é a sua mãe, falecida em 2020, que o ensinou a gostar de andanças.
Augusto ainda era criança quando a mãe o levou para uma cidade vizinha por caminhos alternativos. A rota lhe parecia uma aventura, cheia de travessias a pé, trens e ônibus velhos. Essa experiência lhe ensinou que o caminho mais fácil, curto e rápido nem sempre era o mais bonito. Após estudar música no Rio de Janeiro, ele conseguiu uma bolsa para estadia quatro meses na França, período que se estendeu até os dias de hoje.
Na Europa, o artista conseguiu aprofundar ainda mais esse estilo de vida em viagens. Atualmente, reside em Poitiers, cidade do centro-oeste da França. Trabalha como músico em grupos de música barroca, medieval ou renascentista, sendo especialista em flautas doces e transversais. Também atua com teatro barraco na Comédiens et Compagnie, uma companhia da cidade de Versalhes.
"Eu fui fazer um conservatório, quando conheci esse universo da renascença. Me apaixonei por esse mundo do século 16, pela música, literatura e artes plásticas de um momento em que o homem passou a ser o centro da filosofia", diz Augusto de Alencar, ao JC. "Eu gosto de quebrar barreiras. Todo esse universo renascentista que estudei tem essa coisa que imaginamos, do músico que sai com um banco de cidade em cidade. Quando eu tenho essas imagens, quero experimentar, não quero que fique só num sonho".
Augusto começou a desenvolver o projeto "Via de Anjos" há 13 anos, após uma longa travessia a pé pela Itália, de Pisa até Veneza. "Muitas coisas deram errado porque eu não sabia como fazer, mas começou ali um momento da minha vida, uma vontade inexplicável de liberdade, de caminhar, de sair pelo mundo de uma maneira livre."
De início, o "Via de Anjos" nasceu como um livro que nunca chegou a ser publicado. Em 2020, o texto se transformou nessa contação de histórias misturada com teatro. Alencar ficou responsável por texto, interpretação, canto e violão, com direção de Marcia Beatriz Bello. A abordagem foi desenvolvida para ser compreendida por pessoas de diferentes idades, classes sociais e culturas. "Descobri o mundo através das práticas artísticas, então quero mostrar pra mim mesmo que essas práticas são universais. A minha busca foi tentar encontrar um tema que fosse universal, que é o ser humano".
O artista literalmente caminha entre as cidades em que se apresenta. Na França, já fez a contação de histórias nos municípios Poitiers, Nouaillé-Maupertuis, Vivonne, Smarves e Cornimont. Em 2022, Augusto resolveu atestar pela primeira vez a universalidade do projeto na turnê brasileira pela Zona da Mata de Pernambuco.
Andanças por Pernambuco
A caminhada da "Via de Anjos" no Estado teve a companhia de Ana Castro, que está hospedando o artista. A rota começou por Tracunhaém, nos assentamentos Chico Mendes 1, 2 e Nova Canaã. Nesses primeiros dias, eles se hospedaram no sítio de uma ONG composta por mulheres, onde conseguiram contatos para o restos das estadias.
Em seguida, passaram pela Associação das Mulheres de Nazaré Mata (Amunam). Carpina foi para descanso. Em Paudalho, a apresentação ocorreu para um grupo de artistas e músicos convidados pelo multiartista Toni Arte. No distrito de Guadalajara, encerraram a turnê na Zona da Mata no assentamento Chico Mendes 3 e numa escola primária.
“Nós chegávamos pela tarde, para nos informar sobre as pessoas, como era a vida delas, para que a comunicação pudesse ser o mais natural possível. O objetivo era que a apresentação fosse útil à comunidade”, explica Augusto. “Eu notei isso em todos os lugares que fui: o fato de chegar a pé num lugar, é tão estranho, tão inesperado, que é como se aquilo quebrasse o gelo. É como se isso quebrasse todas as barreiras de uma vez e você entra diretamente na intimidade das pessoas. É algo muito forte”, conta.
"A experiência foi espetacular. Ainda é difícil dizer, pois é como se ainda estivéssemos na emoção da coisa. Tínhamos medo que o espetáculo não fosse tão universal, mas funcionou, funcionou muito bem. Nas três primeiras apresentações tivemos algumas dificuldades, mas depois fomos tateando até encontrar formas de viabilizar”, continua.
Ele relembra que partes profundas da encenação emocionaram trabalhadores rurais mais velhos. "Um deles me disse que o cinema traz as imagens todas prontas, mas que eu trazia imagens que haviam ocorrido apenas na cabeça dele. E que isso era muito mais libertador", compartilha Augusto.
"A mensagem final de 'Via de Anjos' é: vão andar! Não precisa ser um percurso grande, ou ser um aventureiro. Você encontrará esse sentimento em qualquer lugar que seja um pouco mais longe do previsto, do que a sociedade ou que o seu cotidiano prevê. Se vocês abrirem bem os olhos e o coração, vão ocorrer coisas maravilhosas e a emoção será a mesma."