O debate que surge com a pandemia do novo coronavírus ultrapassou facilmente as fronteiras das ciências biológicas e se encaminha com igual força pelas sociais. Coletividade e empatia vêm sendo palavras-chaves para se pensar um novo cotidiano, ainda sem previsão para acabar. Em grande parte das discussões, essas palavras-sentimentos parecem rondar uma das mais complexas atividades humanas: o trabalho. A necessidade de um isolamento trouxe à tona vivências e conflitos em torno da batalha para "ganhar o pão".
São questões que, pelo momento singular em que vivemos, nem sempre têm respostas redondas. O cinema lançou luz, diversas vezes, sobre o tema. Entrar em contato com essas narrativas talvez seja uma bom exercício empático e reflexivo. Elas ultrapassam fronteiras temporais e geográficas, expondo relações que flutuam entre o conflito e a cordialidade. Seja ela sincera ou não.
O exemplo mais óbvio vem daquele que é provavelmente o rosto mais conhecido da história do cinema. Tempos Modernos (1936) é estrelado e dirigido por Charlie Chaplin e, provavelmente, é um dos filmes queridinhos pelo professor de história do colégio, onde, também muito provavelmente, você já deve tê-lo assistido. Estamos falando de um clássico de marca maior. Chaplin retorna ao seu popular andarilho vagabundo (ou Carlitos), que agora se aventura de cabeça pelo mundo operário.
Temos um retrato cômico, montado em cima da realidade daquele tempo, no qual a experiência do trabalho vai ficando mais complexa. Era o período final da Segunda Revolução Industrial, o fordismo seguia a todo vapor e a experiência do modelo socialista de produção se consolidava na União Soviética. Com seu humor físico ímpar, Chaplin absorve tudo isso e lança sua crítica à desumanização racionalizada do período, que traz embutida a ideia do trabalhador-engrenagem. De lá, vêm as célebres cenas de seu colapso em uma linha de montagem e sua prisão por ser confundido com um integrante do movimento sindical.
Mas essas relações entre dignidade e exploração foram ganhando outras camadas desde que Tempos Modernos, hoje um filme com mais de 80 anos, foi lançado. Não só o período histórico, mas o espaço também é elemento importante na equação - ou inequação? - do trabalho. Quando vamos para as periferias do capitalismo, as coisas se complicam mais ainda. É o que mostra Baara (Work ou O Trabalho, 1976), de Souleymane Cissé.
No Mali, coração da África Ocidental, acompanhamos uma narrativa que se fragmenta entre vidas empregadas, desempregadas e subempregadas. Um carregador de mercadorias que consegue trabalho em uma fábrica; um jovem engenheiro que precisa conciliar interesses de patrão e empregados; uma mulher formada que não pode trabalhar por conta das estruturas patriarcais. É um retrato complexo sobre como, em alguns lugares, a exploração dos trabalhos formais e informais não parecem ser muito distantes uma das outras.
Cissé costura histórias que perpassam por questões de gênero, classe, idade e escolaridade. Contudo, é a hierarquização vertical e a autenticidade dos laços entre patronato e operariado que são colocadas em xeque pelo diretor malinês. Há potência em observar uma localidade tão específica e bem filmada como o centro urbano malinês, ao mesmo tempo em que se reconhece o que há de universal nessas relações laborais.
Nesse cenário de relações hierarquizadas, surge um questionamento: quais as possibilidades de nascer uma relação de afeto entre essas posições verticais? Até onde vai a sinceridade desse afeto? A diretora Anna Muylaert abraça essas problemáticas no seu Que Horas Ela Volta?, uma das mais recentes preciosidades do cinema nacional. É o emprego doméstico, profissão de 6,3 milhões de brasileiros (Pnad/IBGE), que ancora a narrativa. A categoria é uma das mais debatidas nesse momento, no centro de discussões está a vulnerabilidade financeira de diaristas dispensadas ou a necessidade de manter trabalhando aquelas fixas ou quase fixas nas residências dos patrões.
São problematizações que têm raiz na forma em que as fronteiras entre empregador e empregado podem ficar nebulosas. A atriz Isis Valverde publicou um vídeo no Instagram sobre a quarentena familiar, com sua empregada doméstica, Claudia, aparecendo ao fundo. Ao justificar a escolha da funcionária em ficar para ajudar, a atriz usa a retórica de "ela é praticamente família".
É justamente sobre essa retórica que o filme de Muylaert se desdobra. A empregada doméstica "que já trabalha aqui há anos e é quase da família" é a Val, em um deslumbrante trabalho de Regina Casé. A chegada da filha Jéssica (Camila Márdila), trazendo uma diferente carga geracional e de acesso à educação, desvela os conflitos ali presentes. Ao mesmo tempo, nasce o questionamento: qual a sinceridade do afeto presente nessas relações verticais? O carinho de Val pelo filho da patroa e vice-versa deve ser repensado dentro de uma estrutura de exploração?
E quando o trabalho, em sua formalidade, não é mais uma possibilidade, quais tipos de sobrevivência existem por aí? O cinema do inglês Ken Loach é marcado pela investigação das questões do proletariado em seu país de origem. É assim com Eu, Daniel Blake, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2016. O senhor que dá nome ao título é um carpinteiro que sofre um ataque cardíaco, o pontapé inicial de uma rede de desamparos pela qual passará.
Viúvo, Blake recebe uma ordem médica de parar de trabalhar temporariamente. Entretanto, não é o que pensa a burocracia estatal para lhe garantir uma seguridade. Enquanto isso, é preciso se virar usando a informalidade como caminho. Em suas andanças para sobreviver, conhece Katie e seus dois filhos, começando uma bonita relação de ajuda mútua e empatia. Mais uma vez, a universalidade das relações e contradições do mundo laboral surgem como grande força dramática.
Por fim, em tempos de circulação restrita, um dos mais potentes filmes nesse sentido é sobre um andarilho que salta de trabalho em trabalho pelos rincões interioranos do Brasil. Em certo momento de Arábia (2018), de João Dumans e Affonso Uchoa, o protagonista Cristiano olha para a fábrica onde trabalha e lança reflexões. Afirma querer chamar os trabalhadores e fazer um clamor: "Vamos pra casa. Nós somos só um bando de cavalos velhos".
Cristiano é um ex-detento, agravante sério para quem precisa sobreviver com dignidade no mundo profissional, exposto a diferentes graus de vulnerabilidade. A história de Cristiano acaba se tornando um mosaico de laços construídos e perdidos pela inconstância da vida que precisa levar.
O cansaço parece ser a tônica de sua existência, tal qual o cavalo velho. Dessa vida, Arábia extrai uma poesia verdadeiramente bela, na medida possível do belo em uma existência tão trágica como a dele. Na verdade, é o próprio Cristiano que constrói essa beleza quando passa por um raro estímulo para pensar em si mesmo e narrar sua própria história, fio condutor de Arábia.