Vinicius de Moraes de Moraes veio ao Rio em 1950, na época estava no consulado brasileiro em Los Angeles, quando escutou no rádio Canção de Amor, com Elizeth Cardoso: “A verdade é que Elizette dava uma aula de canto, no disco em questão, e eu me pus a ouvi-la furiosamente dezenas de vezes por dia. A música me fazia sofrer, me colocava num espaço diferente no mundo, me abraçava feito uma mulher, sei lá”, escreveu o poeta em 1953, na revista carioca Flan.
Vinicius de Moraes teria uma importância fundamental na carreira de Elizete Cardoso, que completaria cem anos nesta quinta-feira, 16 de julho. Falecida há vinte anos, ela é citada quase sempre com o epíteto “A Divina”, bem merecido. Foi uma das mais importantes vozes da MPB (para muita gente, a melhor). Elizette, Elizeth, Elizete, ao longo dos anos ela foi alterando o nome, que no documento de batismo é Elisete Moreira Cardoso, nascida no subúrbio do Rio, de família pobre. A mãe era do lar “como então se dizia”, Seu Jaime, o pai, fiscal da prefeitura, e da rua. Boêmio e mulherengo. Nisso a filha puxou a ele. “Gostava de dançar e namorar, tive vários namorados. Houve ocasiões que nem sabia que lado deveria tomar na rua, porque era um namorado me esperando do lado esquerdo, outro do lado direito, e muitas vezes um terceiro esperando à frente”.
Um dos namorados de Elisete foi o craque da seleção de 1938 Leônidas da Silva, a quem conheceu quando se tornou profissional, contratada pela Rádio Guanabara. Um dia o pai a viu descer, diante de casa, do carro do jogador. Quando soube de quem se tratava a proibiu de sair com ele. Ela continuou o namoro. O pai descobriu. Num dia de um jogo entre o Flamengo, time de Leônidas, e o América, cujo estádio ficava perto de onde moravam, seu Jaime disse que ia ao jogo para dar uma surra no craque em pleno gramado, na frente da torcida. Ela ligou para Leônidas anunciando o fim do namoro.
Elizeth Cardoso foi a única cantora da era do rádio que conseguiu atravessar as décadas sem perder prestígio nem cair na obscuridade. Claro, gravadoras são empresas comerciais que visam lucro. No final da vida, A Divina tinha público certo e sabido, mas não em quantidade que justificasse, para as gravadoras, grandes investimentos. Seu último disco, Ari Amoroso, foi viabilizado com patrocínios de empresas que nada tinham a ver com música. Mas gravou cercada de alguns dos melhores músicos do Rio.
Voltando a Vinicius de Moraes, ele conheceu Elizete Cardoso em Paris, em 1952. A cantora participou de umas das maiores extravagâncias para divulgação de produtos brasileiros no exterior. Uma festa no castelo do estilista (então chamado costureiro) Jacques Fath, um dos mais badalados da França. A frente da festa, Assis Chateaubriand (Diários Associados), Milton Lundgren (Casas Pernambucanas), e Guilherme da Silveira (Indústria Têxtil Bangu). Entre os convidados, Clark Gable, Ginger Rogers, Gina Lolobrigida, filhos do rei Ibn Saud, da Arábia Saudita. Segundo um dos convidados, fazia lembrar uma feijoada. Não pelo sabor, óbvio, mas pelas grandes quantidades.
Elizeth Cardoso, Jamelão, Ademilde Fonseca foram os artistas do rádio convidados, porém o maior sucesso entre os franceses e na festa foi do exuense Zé Gonzaga, irmão de Luiz Gonzaga, que estava porque cangaceiros faziam parte das alegorias da decoração. Nessa viagem, Elizete firmou amizade com Vinicius de Moraes, e assim seria admitida num universo a que poucas estrelas da música popular teve acesso, a nata intelectual carioca. Clara, Vinicius deu em cima dela. Muitas vezes, mas nunca teve sucesso. Baixinho, cheinho, não fazia o tipo de Elizete Cardoso, que apreciava homens malhados e altos. Alguns deles: o compositor Rui Rei, media 1.90, Cesar Tedim (que foi marido de Tonia Carreiro) quase 1,92, Agostinho dos Santos, 1.85. Talvez algo a ver com o irascível seu Jaime, pai dela, um homenzarrão de 1.90.
Caiu nas graças de críticos rigorosos, como Sílvio Túlio Cardoso, Lúcio Rangel, e seu sobrinho Sérgio Porto, que se derramavam em elogios com os bons discos da cantora, e faziam-lhe afagos quando gravava músicas que estava aquém do seu nível. “Após Canção de amor, comecei a me perguntar por que não davam a ela músicas à altura do seu talento ... uma voz rara entre nossos interpretes, pois une a qualidade de uma boa voz erudita às de uma gostosa voz popular”, comentário de Vinicius, na citada Flan.
Elizete Cardoso demorou a chegar às paradas de sucesso. Foi descoberta por Jacob do Bandolim, quase sue vizinho, aos 16 anos. Aos 29 ainda não formava no primeiro time das cantoras da música popular. Certamente porque não seguia o modelo geral. Não insuflava fãs, não escondia sua vida amorosa. Mantinha um relacionamento às claras com o compositor Evaldo Rui, que era casado. Não era favorita de clubes de futebol, ou de alguma das forças armadas (Emilinha Borba, por exemplo, era a “Favorita da Marinha”), e adotou aos 17, uma filha, que registrou como sendo filha de mãe solteira. Faltava-lhe aquela música que decide uma carreira.
No seu aniversário de 30 anos ela nunca chorou tanto. Neste dia aconteceu a trágica derrota da seleção brasileira, no Maracanã, na final da Copa do Mundo, para os uruguaios. Duas semanas depois ela adentrou o estúdio para gravar pra um 78 rotações. No lado A seria Complexo, do consagrado Wilson Batista. No B, uma composição de um técnico de som, Elano de Paula, e do cômico Chocolate.
O Maestro Pachequinho escreveu para Complexo um arranjo tão complexo que os músicos tiveram dificuldade de tocá-lo. Cansaram-se, e a maioria da orquestra foi embora. O maestro decidiu que a outra música ficaria pro dia seguinte também. Elano de Paula (irmão de Chico Anísio), fincou pé. Teria que gravar naquele mesmo dia. Restaram dos músicos, seis violinistas.Pediu que esperassem ali. Voltou com o saxofonista Zé Bodega. O sax tenor, recifense, irmão do maestro Severino Araújo da Orquestra Tabajara, improvisou uma introdução, enfrentou a má vontade dos violinistas,criou a até a coda (o fecho da música). Deveria ter recebido crédito como co-autor.
A gravadora tentou trabalhar o lado A do disco, mas foi o B que os programadores das rádios preferiram. Canção de Amor, de Elano e Chocolate, tocada no país inteiro. Um clássico instantâneo. Fez de Elizeth Cardoso finalmente uma estrela de primeira grandeza. Quando a música estourou, ela recebeu um telefonema de Almirante, então um dos nomes mais respeitados do rádio brasileiro, convidando-a para trabalhar na Radio Tupi. Sua carreira deslanchara e não teria volta. Deixaria de ser taxi-girl, dançarina de salões profissionais de dança. Os cavalheiros pagavam para dançar com as moças da casa. Mas não iam alem da dança. Ganhava pouco na Rádio Guanabara, precisava esticar no Dancing Avenida, no Centro do Rio. Antes disso foi balconista de loja, cabeleireira.
A trajetória de Elizete Cardoso transcendeu o rádio. Tornou-se cantora classe A, talvez a primeira na música popular brasileira. Em 1958 gravou o histórico Canção do Amor Demais, com composições de Tom e Vinicius, considerado o disco que abriu caminho para a bossa nova. O LP, segundo o conceituado crítico Sérgio Cabral (genitor do ladino Sergio Cabral Filho ex-governador do Rio), autor da melhor biografia de Elizete, Canção do Amor de Mais só não é perfeito por causa de Vida Bela um baiãozinho chinfrim, e de Chega de Saudade, exatamente a faixa mais citada do disco. O violonista que tocou com Elizeth nesta música foi João Gilberto. Que tentou com que a cantora interpretasse do jeito que ele imaginava a canção, enquanto ela não entendia o violão dele. E cantou do seu jeito. Com um trombone que sobrava na gravação. Mas a obra prima mesmo de Elizete foram os dois discos, ao vivo, registros de recital, em 1968, no Teatro João Caetano, com o Zimbo Trio, e Jacob do Bandolim e o Trio de Ouro.
Elizete Cardoso terminou a carreira por cima. Uma de suas ultimas temporadas aconteceu com o violonista Rafael Rabello, cujo áudio foi repertório do seu primeiro disco póstumo. Ela morreu em 7 de maio de 1990, em consequência de um câncer. Foi preciso que se arrecadasse dinheiro para os custos com o hospital. No final da vida, apesar do prestígio, a cantora ganhava para o sustento. Seu último grande sucesso foi em 1973, um samba rock, hoje politicamente incorreto, Eu Bebo Sim (Luiz Antonio/João do Violão), do impagável refrão: “Bebida não faz mal a ninguém/bebida não faz mal a ninguém/água faz mal à saúde”.