MEMÓRIA

Zé Dantas: cem anos do poeta sertanejo

Nascido em Carnaíba, Sertão do Pajeú, José de Sousa Dantas Filho foi autor de várias das mais importantes letras da canção popular nordestina

Cadastrado por

Nathália Pereira

Publicado em 27/02/2021 às 9:15 | Atualizado em 27/02/2021 às 9:18
Luiz Gonzaga gravou dezenas de músicas escritas por Zé Dantas. Vem Morena, Riacho do Navio e A Volta da Asa Branca entre elas - REPRODUÇÃO

Ao lado do Pátio de Eventos Milton Pierre, no centro de Carnaíba, Sertão do Pajeú, Pernambuco, fica o Museu Zé Dantas. Na entrada da construção de muros amarelos, a escultura de uma sanfona em concreto se divide entre duas paredes. A primeira metade traz escritos alguns dos títulos mais famosos do compositor. Sabiá, Algodão, Vem Morena, Vozes da Seca, Riacho do Navio, todas gravadas por Luiz Gonzaga. A silhueta de uma asa-branca, inspiração para outra das mais conhecidas, vigia o letreiro.

Na segunda parte da sanfona, um desenho do rosto do homenageado ainda jovem. O interior é recheado por objetos pessoais, partituras, instrumentos de trabalho, recortes com matérias de jornal e fotografias de Zé Dantas — criança, já adulto, ao lado da esposa, Dona Yolanda, e na rotina como médico. Gerida pela prefeitura, a construção inaugurada em novembro de 2017 é uma das várias celebrações a José de Sousa Dantas Filho que, se vivo, completaria hoje cem anos.

Repetidamente gravado pelo Rei do Baião, a partir de 1950, Zé Dantas viveu por 41 anos, cercado pelas figuras e lembranças do que testemunhou durante a infância na terra natal, ainda distrito do município de Flores. Também escreveu poemas e textos sobre cultura popular nordestina, apresentou programas de rádio — um deles, No Mundo do Baião, ao lado de Humberto Teixeira, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro —, enquanto dedicava-se, ainda, à medicina, o que fez até o final da vida.

O historiador, pesquisador de história cultural e doutorando em história pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Harlan Teixeira, avalia que a proximidade do pai do compositor, José de Sousa Dantas, com os costumes da gente do povo teve papel importante no refino da sensibilidade do filho para as artes.

"Zé Dantas nasceu no Sertão do Estado, onde morou até os nove anos de idade. Era filho de um fazendeiro de classe alta, que chegou a ser prefeito [de Flores]. O pai dele era um homem que gostava de festa, incentivava o Carnaval, patrocinava [manifestações de] papangus, maracatus, frevo, e Zé acompanhava isso de perto. Por conta da participação política do pai, ele teve muito contato com as festas populares, apesar da realidade socioeconômica elitizada. Quando veio para o Recife, trouxe essa bagagem cultural do interior com ele e, a partir da década de 1940, consegue captar essas mensagens e transformar essas representações nas letras das canções que fizeram muito sucesso", destaca Teixeira.

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"Mesmo na época em que moraram no Rio de Janeiro, Zé Dantas e Dona Yolanda sempre visitavam Carnaíba. Ele nunca se afastou das raízes sertanejas. Como filho de fazendeiro, depois morador da capital e estudante de medicina, poderia ter abandonado a cidade onde nasceu, mas não, ela permaneceu no pensamento dele. Voltava lá justamente para não perder essa ligação", complementa.

O historiador lembra que a paixão de Zé Dantas pela escrita não era compartilhada com a família, por isso os primeiros discos de Gonzagão em que figuram letras de Dantas trazem o crédito de composição apenas no interior, sem registro a respeito na capa. Foi um pedido de Zé Dantas.

"O pai não queria de jeito nenhum que ele se envolvesse com música. Quando soube, ficou chateado, disse que não daria mais mesada. Na época em que houve o primeiro retorno financeiro, veio a sentença paterna: pode seguir com a música, mas não largue a medicina."

Museu Zé Dantas, em Carnaíba, interior de Pernambuco - ROBERTO ARRAIS/ACERVO MUSEU ZÉ DANTAS

Convidado pelo Centro Cultural Cais do Sertão para elaborar playlist especial, como parte das celebrações pelo centenário, o pesquisador escolheu 17 músicas, interpretadas por nomes tradicionais e mais recentes, como a banda Mastruz com Leite, representante do forró estilizado dos anos 1990, e explica:

"As letras dele são atuais. A realidade das dificuldades sertanejas melhorou, mas muitas coisas permanecem. Além das coisas boas que também registrou, as festas, danças e tradições que se mantêm. O forró, assim como todo estilo musical, é dinâmico. O próprio Luiz Gonzaga, quando começou a gravar, formava um trio com sanfona, triângulo e zabumba. Já nos anos 1970, adicionou guitarra e bateria. Mais para frente, Jorge de Altinho colocou metais de sopro, Assisão incorporou bateria eletrônica... ou seja, as letras de Zé e a interpretação de Gonzaga estão sempre em diálogo com o que é feito hoje por conta de sua profundidade. Mesmo o que não faz mais parte da realidade atual permanece no imaginário", diz Harlan Teixeira. "O maior legado de Zé Dantas foi ter conseguido juntar erudito e popular, transformando em letras atemporais toda a bagagem de memória de seus primeiros anos."

O aniversário do compositor também ganha festejo em uma ação conjunta entre a Secretaria de Cultura de Pernambuco, o Cais do Sertão, a TV Pernambuco e a Rádio Frei Caneca, com agenda que segue até 6 de março. A programação de hoje tem entre os destaque o webinário Um Dedo de Prosa — 100 Anos de ZéDantas, com participação de Leda Dias, gerente de políticas culturais da Secult-PE, José Dantas, filho do homenageado, e Anselmo Alves, documentarista, colecionador e pesquisador. A transmissão começa às 18h, pela Rádio Frei Caneca e através do youtube.com/caisdosertao.

Máquina de datilografar do compositor, parte do acervo exposto no Museu Zé Dantas - TAUÃ LEANDRO/ACERVO MUSEU ZÉ DANTAS

DE NETA PARA AVÔ

Outro tributo partirá do afeto familiar que rodeia a cantora e compositora Marina Elali (veja vídeo com depoimento dela abaixo), neta de Zé e Yolanda: também às 18h, a TVPE exibe Psiu!, documentário sobre vida e obra de Zé Dantas, e na sequência, o show Marina Elali Duetos - Homenagem A Luiz Gonzaga E Zé Dantas - (2012), que virou CD e DVD nos quais Marina homenageia Dantas e Gonzaga.

"Cresci ouvindo as histórias e principalmente as músicas dele. Minha avó falava: 'Filha, está ouvindo essa música? É do seu vô Zé Dantas'. Um dia, na escola, a professora do coral disse que aprenderíamos um pot-pourri com clássicos da música nordestina, e várias eram do meu avô. Eu tinha sete anos, e foi o primeiro momento que lembro de sentir muito orgulho de ser neta de Zé Dantas. Fui me apaixonando cada vez mais", relembra Marina.

Dona Yolanda, de quem Marina era muito próxima, faleceu em janeiro de 2017, aos 86 anos. Foi a verdadeira guardiã de objetos e lembranças do convívio com o marido, e inspiração para muitas de suas criações. A Letra I, na voz de Gonzagão, é a mais famosa: "Vai cartinha fechada / Não deixa ninguém te abrir / Aquela casa caiada / Donde mora a letra I / Existe como uma cacimba / Do rio que o verão secou / Meus zóio chorou tanta mágoa / Que hoje sem água / Me responde a dor".

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Marina Elali nasceu 21 anos depois da morte do avô artista, por isso, Dona Yolanda materializou, como uma missão, quem ele foi, na vida e na música, para a neta.

"Tem uma coisa muito bonitinha que vovó Landa sempre contava para mim: 'Você sabia que o próprio Gonzaga dizia que o seu avô era o parceiro predileto dele?'. Na casa dela sempre teve um espaço reservado para vovô Zé Dantas. Muitas fotos, muitos quadros, todos os livros, arquivos de jornal, os discos de vinil, LPs, o gravador dele, o violão, o piano... tive acesso a tudo isso", recorda. "Ela contava que ele retornava dos plantões médicos com os bolsos cheios de papéis com letras de música, cantando para ela".

"Já recebi vídeos de meu avô sendo ouvindo e cantado na França, no Japão... é uma alegria muito grande saber que vovô foi uma pessoa tão iluminada", diz Marina.

Luiz Gonzaga dizia que Zé Dantas era "seu parceiro predileto" - REPRODUÇÃO

CARNAÍBA EM FESTA

A cantora também aparecerá na festa oficial de Carnaíba para o filho ilustre. A live Quinteto Violado Canta Zé Dantas, com depoimento dela sobre o avô, começa às 21h de hoje, ao vivo do Teatro José Fernandes de Andrade e com transmissão pelas redes do Quinteto e da prefeitura. Pela manhã, a Banda Filarmônica Santo Antônio presta homenagem em desfile pelas ruas.

Outras lives (confira o calendário no final da matéria) e mais homenagens, dentre os quais lançamentos de livros e cordéis, documentário e roteiros esportivos, desta vez presenciais, estão nos planos da prefeitura, mas dependem da situação da pandemia, adianta a diretora de imprensa da cidade, Maria Brassan. Mas passar a data em branco, nunca: "O município não só tem um museu, eu diria que Carnaíba respira Zé Dantas".

Agenda de lives em Carnaíba:

26/2 - Quinteto Violado

13/3 – Genailson do Acordeon

27/3 – Marcos e Pavão

10/4 – Bandas de Pífanos

24/4 – Júnior Mendes

08/5 – Adriano Lima

22/5 – Tiago Souza

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