Um problema histórico, custoso e que afeta boa parte dos imóveis do Recife começa, ao fim de 2021, a ganhar novas possibilidades de resolução. Até o dia 31 de dezembro, 49.365 imóveis submetidos ao regime enfitêutico na capital pernambucana, ou seja, imóveis sob o regime de aforamento que pagam as chamadas taxas de Marinha (foro e laudêmio) poderão deixar de ter esse ônus contabilizado desde 1818, como forma de repasse para a coroa real.
A mudança é histórica e traz apaziguamento às cobranças que geram ferrenhas discussões entre proprietários de imóveis, inquilinos, corretores imobiliários, construtoras e qualquer outro ator envolvido em transações imobiliárias, chegando inclusive à justiça.
Lançado no dia 10 de junho de 2021, o programa SPU+ é uma iniciativa do governo feral que prevê movimentar R$ 110 bilhões em imóveis da União até 2022. Com a remição digital do foro, 600 mil imóveis sob o regime de aforamento e laudêmio poderão se ver livres da cobrança em todo o País.
De acordo com o ministério da Economia, em Pernambuco, 49.365 imóveis atualmente estão sujeitos ao pagamento da taxa de aforamento anual, no valor equivalente a 0,6% do valor do terreno, bem como a quitação da taxa de laudêmio, que é exigida na transação de venda do imóvel, no valor equivalente a 5% do valor atualizado do terreno.
Esse mesmo número de propriedades poderá ter acesso à remição digital do foro. Que começará a ser disponibilizada, de forma gradativa, até o dia 31 de dezembro de 2021.
As taxas incidentes sobre terrenos de Marinha foram criadas em 1818 e serviam como repasse à Coroa pela proteção da costa brasileira. Os valores incidem sobre os terrenos situados até 33 metros em direção ao continente a partir da medida das marés altas e baixas do ano de 1831 e são cobrados até hoje sem qualquer atualização em relação às condições de incidência.
Os terrenos ficam sob poder da União em duas condições distintas. O ocupante pode deter 83% do terreno, mediante o contrato de aforamento feito com a União (são esses casos que estarão sendo atendidos pela remição de foro). Outro modelo é o regime de ocupação, no qual o terreno é 100% da União (para esses será aberta a possibilidade de compra, ainda não regulamentada).
Tanto para ocupação ou aforamento, os ocupantes pagam a taxa do terreno de forma anual, em sete prestações, com alteração também anual e de acordo com a mudança no valor da planta genérica dos imóveis em cada município.
Para o regime de ocupação de terrenos de marinha, o percentual para o cálculo é de 2% ou de 5% (casos dos terrenos cadastrados na SPU depois da Constituição de 1988).
Já no regime de aforamento, o percentual é de 0,6% do valor do terreno.
Para venda do imóvel, tanto sob ocupação ou aforamento, é paga uma terceira taxa: o laudêmio. Ele é calculado em cima de 5% do valor do imóvel.
Num primeiro momento, a condição começa a atender pequenos grupos. Na capital pernambucana, os primeiros a terem acesso ao programa serão 413 imóveis, localizados em cinco edifícios na Rua Padre Carapuceiro, no bairro de Boa Viagem.
"Os responsáveis pelos imóveis localizados no logradouro Rua Padre Carapuceiro, que serão indicados para o processo de remição de foro nesta primeira etapa, serão comunicados pela SPU por meio de correspondência com aviso de recebimento, que será enviada pelos Correios até o final deste mês de dezembro", diz o ministério da Economia. Os demais ainda terão que esperar as liberações que serão feitas pelo programa.
No Recife, caso todos os imóveis previstos atendam às condições necessárias, o processo de remição de foro pode atingir até R$ 352 milhões em arrecadação. Desse total, 20% serão repassados aos cofres do Estado e do município.
Vale ressaltar que a possibilidade de compra do percentual do imóvel pertencente à União é uma condição estabelecida apenas para os imóveis que estão sob o regime de aforamento e não de ocupação. No regime de aforamento, o morador passa a ter um domínio útil sobre o terreno de Marinha (83%), restando à União os 17% que agora poderão ser comprados. Já no caso do regime de ocupação, a União é proprietária da área como um todo e ainda pode reivindicar o direito de uso do terreno quando quiser.
Além da remição, os ocupantes regulares de imóveis, que atualmente pagam taxa anual pela utilização do espaço, também poderão adquirir a propriedade, segundo o ministério da Economia. Nesse caso, o terreno, que é 100% da União, poderá passar aos ocupantes mediante a manifestação do interesse na compra do terreno, por meio da Proposta de Manifestação de Aquisição (PMA). Estima-se que em todo o País 300 mil imóveis poderão ser impactados com mais essa medida, que ainda não foi regulamentada.
"Sob o regime de ocupação, a SPU ainda não regulamentou como vai se dar esse resgate. Mas a possibilidade de remição do foro já é muito positiva. Hoje em dia a gente não vê mais sentido dos imóveis estarem sob poder da União. A razão sob a qual a medida foi criada já não existe mais. Manter essa condição é apenas onerar o contribuinte", diz a advogada Raphaela Gonçalves, especialista em Direito Imobiliário do escritório Da Fonte Advogados.
Segundo a SPU, 40% do território do Recife encontra-se em terreno de Marinha, e os ocupantes dos imóveis sob regime de aforamento precisarão estar atentos aos prazos para não perder a possibilidade de remição do foro, que para pagamentos à vista concederá um desconto de 25% no valor devido.
"Vai ser preciso não estar com nenhuma pendência financeira junto à SPU, nenhum parcelamento. Se não estiver quite, não consegue fazer o procedimento simplificado de remição. É preciso também estar atento aos prazos. O morador vai se habilitar no aplicativo, receber a notificação da SPU e dar em ciência para depois pagar o boleto. Se perder os prazos, perde o desconto", alerta a advogada.
A remição de foro digital será feita por meio do aplicativo SPUApp, mas ainda assim é preciso esperar o avanço do programa, já que, como já dito, a ampliação da possibilidade de remição será gradativa.
Para além da ação de simplificação da remição, por parte do governo federal, o Ministério Público Federal em Pernambuco já entrou com uma ação, que atualmente ainda tramita no âmbito da Justiça Federal de Pernambuco, questionando as definições e cálculos das taxas de Marinha.
A ação questiona o fato que que os valores incidem sobre os terrenos situados até 33 metros em direção ao continente a partir da medida das marés altas e baixas do ano de 1831, a chamada linha de preamar, que ainda inclui aterros e as margens de rios e lagoas que sofrem influência das marés, alegando que já não há mais validade dessa demarcação, cujos critérios foram estabelecidos ainda no século 19.
O processo se arrasta desde 2017. O prazo longo deu-se devido à necessidade de apresentação de estudos topográficos que comprovassem divergências em relação aos cálculos realizados pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), o que aconteceu no ano passado.
De acordo com o MPF/PE , atualmente, o processo "segue em andamento e encontra-se em fase de sanar pendências em laudo técnico produzido por perito judicial, que foi elaborado após decisão da Justiça Federal em Pernambuco".