A família de Marcone da Silva e Cláudia Matias ficou mais pobre. Desempregado há 8 meses e sem conseguir uma nova colocação na pandemia da covid-19, o ex-porteiro viu sua renda encolher. Antes, ele, a esposa e os nove filhos viviam com pouco mais de um salário mínimo, complementado pelo Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família) de R$ 253. Agora, a única renda é o auxílio de R$ 400, reforçado pelos bicos que Marcone faz. A história do casal, morador da comunidade do Bode, no Pina, é um recorte da realidade brasileira. Nos últimos 10 anos, o País empobreceu.
Levantamento da Tendências Consultoria, baseado no relatório 'Classes de Renda e Consumo no Brasil", mostra que mais da metade da população brasileira (51%) integra as classes D e E. Há 10 anos, em 2012, esse percentual era de 48,7%. Isso quer dizer que; 37,7 milhões de domicílios têm renda mensal de, no máximo, R$ 2,8 mil. O fenômeno das famílias migrando das classes D e E para a C, que turbinou o consumo no País durante anos sofreu uma inversão. Agora são as pessoas da classe C que estão sendo empurradas de volta à classificação D e E.
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No caso de Marcone e Cláudia, eles jáintegravam a classe D e E e permaneceram na mesma classificação. O revés na mobilidade social aconteceu porque passaram a fazer parte do Mapa da Fome, condição em que o Brasil voltou a figurar, em 2021, após ter saído em 2014.
O que chama atenção no estudo da Tendências, assim como de outras instituições, é que nem o retorno ao Mapa da Fome nem o empobrecimento são reflexo da pandemia da covid-19. A paralisação da economia e o aumento da pobreza e do desemprego, provocados pela doença, contribuíram para tornar a situação mais severa, mas não foram as responsáveis.
É muito antes, na recessão de 2015 e 2016, que os impactos na mobilidade social no Brasil começam a acontecer. Entre 2016 e 2021, a participação da classe C na renda do País só faz cair, ano a ano. Em 2016 era de 22,8% e no ano passado fechou em 20,2%.
A situação é ainda mais grave quando se analisa os números do Nordeste. Se até 2015 a região vinha num acelerado processo de mobilidade social, a partir de 2016 o desempenho foi ladeira abaixo, com as famílias que avançaram para a classe C, retornando a classificação D e E.
Até 2016, a classe C foi avançando ano a ano, até representar 19,1% da renda. Em 2020, a classe C recua para 16%. No caminho contrário, a fatia da classe D e E foi aumentando, com patamar de 38% antes da recessão, alcançando 41,3% em 2016 e piorando bastante durante da pandemia (46,4%, em 2020).
DIFICULDADE
"A situação já vinha ruim pra gente mesmo antes essa doença (a covid-19). A gente morava no Ibura e pagava aluguel. Mesmo eu trabalhando como porteiro e recebendo um salário de R$ 1.275, sobrava pouco para sustentar a família. Então decidimos sair da casa e voltar pro Bode. Eu nasci e me criei aqui. Eu mesmo construí a palafita sozinho para não ter que pagar aluguel. Hoje o que eu preciso é de um trabalho, porque só com dinheiro de bico a gente não consegue", lamenta Marcone.
Não bastasse a falta de ocupação, a inflação também corrói a renda da família. Na casa de Marcone e Cláudia, eles e as crianças já não tomam mais café da manhã. A ideia é priorizar o almoço. Consumir carne só se receber doação de alguém. Para sobreviver, Marcone faz vários tipos de bico, como pedreiro, pintor de parede e vendedor de água no sinal de trânsito.
GASTOS
O levantamento da Tendências também analisou os gastos de cada uma das classes sociais. Habitação é a principal despesa para todas as classes. Depois dela, os itens vão mudando. No caso das classes A e B, transporte aparece em segundo lugar, seguido de alimentação, cuidados com a saúde e educação. Para as classes C, D e E, após habitação vem alimentação, transporte e assistência à saúde.
Em entrevista recente ao JC, o economista Sérgio Buarque reconhece que os programas de transferência de renda são importantes para atenuar a pobreza, mas alerta sobre a importância de estimular o crescimento econômico.
"Vivemos um paradoxo hoje no País, quanto menos renda a gente gera (por falta de empregos) mais renda nós precisamos para transferir aos mais vulneráveis. É necessário ter políticas econômicas para voltar a crescer", afirma.
Pelo momento atual, com o Brasil sinalizando para uma estagflação (junção de baixo crescimento econômico com inflação alta), as expectativas de reverter o cenário de desigualdade não são animadores.
As projeções apontam que a economia brasileira deve crescer pouco nos próximos anos. A recuperação da dinâmica econômica é que vai permitir fortalecer o mercado de trabalho, gerar emprego e permitir o avanço da mobilidade social.
Mesmo diante de um ano eleitoral, quando o dinheiro tradicionalmente costuma circular, as perpectivas econômicas para 2022 não são otimistas. O avanço da variante Ômicron da covid-19, a nova influenza e a previsão de mais uma eleição polarizada deverão ter impacto negativo sobre o Produto Interno Bruto (PIB).
Para 2022, a expectativa do Boletim Focus, do Banco Central, é de que a economia brasileira fique estável, com uma alta do PIB de 0,29%. Em 2023, a previsão é de um avanço de 1,75%