A menina

João Humberto Martorelli
Publicado em 27/08/2020 às 2:00


Que boneca é esta puxada de meu corpo, cheia de esgares, e ensanguentada? Que vozerio ouço daqui, o som do coco de minha infância misturado a gritos atrozes, como se diabos avançassem suas línguas em direção ao meu útero, que só agora descubro ter? Talvez, de seu sono distante, fossem as imagens da menina. Trágicas. Mais trágico ainda é constatar que a humanidade, cada vez com mais força, pratica o mal a pretexto de defender a cristandade e os princípios da solidariedade e da vida. Nunca presenciei ato mais grotesco do que a pretensão de invasão do CISAM para impedir o aborto da menina de 10 anos, abusada, estuprada e engravidada pelo tio.

Não são cristãos, nem os legitima a tanto a peroração do bispo. Enquanto o drama real se desenrolava, a humanidade dentro do espírito puro e do coração da criança, a vítima real, única, a sofredora, a Cristo feita menina, o arreganho vociferador se fazia ouvir do lado de fora. É uma dimensão incompreensível nos dias de hoje, um ato reprovável não apenas como ato desrespeitoso ao drama, mas pelos sentimentos que ele repercute: imaturidade, ódio, insensibilidade, falta de solidariedade. É repulsivo. Mas, graças a Deus, e a pessoas cristãs e solidárias, ela superou, teve sua chance de vida renovada em Cristo, que lhe proverá os meios para viver o resto de infância. Oremos por isso. E passemos a outro assunto.

Agosto é o mês do falecimento de Carlos Drummond de Andrade, que se foi no dia 17, depois de um ataque cardíaco e uma superveniente insuficiência respiratória, mas todos sabemos que o que o levou mesmo foi a morte de sua filha Maria Julieta. Que pai sobrevive à morte da filha amada? Assim era ele, mineiro de Itabira, que deixou cedo e que lhe angustiava a alma, poucas vezes retornou, e sempre às voltas com a morte de um parente, a mãe, um irmão, o poeta achava que esta vida é cheia de tristezas, o que não o impediu de viver uma vida normal, de funcionário público respeitável e zeloso, repleta de amigos, de gestos, em nenhum outro poeta a vida é tão profundamente analisada com sua angelical simplicidade.

Drummond deixou um verso para a menina, mostrando que a castidade é eterna, e que a infância se refaz: "De novo a estrela brilhará, mostrando o perdido caminho da perdida inocência. E eu irei pequenino, irei luminoso conversando anjos que ninguém conversa". Vai, Drummond, daí, deste céu em que você está merecidamente por praticar a humanidade, ensina a esse povo, ensina ao bispo.

João Humberto Martorelli, advogado

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