A crescente indignação da sociedade brasileira com o desastre do governo Bolsonaro vinha formando uma nova polarização política no Brasil, com agrupamento de lideranças e personalidades de várias tendências - da esquerda tradicional aos conservadores democratas - contra o projeto autoritário e obscurantista do presidente. O recente depoimento emocionado da epidemiologista Natália Pasternak e o duro artigo de Miguel Reale Júnior publicado no Estado de São Paulo conclamando à formação de um "governo de salvação nacional", para dar dois exemplos de fora da política, são sintomas desta indignação que estava configurando a polarização política entre civilização e barbárie.
A decisão do ministro Edson Fachin que acabou com a inelegibilidade do ex-presidente Lula (sem o inocentá-lo, é bom que se diga) provocou o deslocamento do eixo da polarização - civilização versus barbárie - para a velha polarização de 2018, agora com o confronto entre lulistas e bolsonaristas.
O cavalo de pau jurídico do ministro Fachin diluiu os crimes de Bolsonaro e a crise sanitária, no meio de um debate político contaminado que antecipa a disputa eleitoral de 2022. A provável candidatura à presidência do ex-presidente pode capitalizar uma parcela da indignação da sociedade com Bolsonaro, aproveitando a falta de liderança (ou o excesso dela) do difuso sentimento de repulsa ao bolsonarismo. Ao mesmo tempo, o retorno de Lula provoca a fragmentação da onda anti-bolsonarista, a divisão dos indignados e o emparedamento do centro-democrático.
Como a rejeição ao ex-presidente e ao seu partido é tão grande (ou quase tanto) quanto a indignação com a tragédia de Bolsonaro, num possível confronto lulismo-bolsonarismo, o Brasil viverá mais uma vez uma lamentável disputa dos rejeitados.
O candidato Lula vai explorar a memória positiva do seu primeiro governo, com as recorrentes narrativas exageradas, mas vai ter que lidar com o desmantelo posterior, especialmente do governo Dilma, e com a desmoralização das denúncias de corrupção que a decisão de Fachin não anula. E Bolsonaro, que deveria ser jogado no lixo da história pelas barbaridades do governo, conta com seus seguidores fanáticos e pode tornar-se um candidato muito forte se, nos próximos meses, houver uma vacinação em massa (apesar dele e da sua demência), viabilizando a recuperação da economia em 2022. Mas o Brasil não pode continuar preso a esta polarização dos rejeitados.
Sérgio Buarque, economista
*Os artigos são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do JC