Finados é data em que tradicionalmente trocamos as angústias do presente e as incertezas do futuro por lembranças do passado. Pode-se aproveitar o dia de finados, como esse da última terça, para falar por exemplo de crendices e superstições portuguesas ainda tão presentes, sobretudo na gente simples do povo. Como a de que as almas dos afogados passeiam sobre as águas do mar e dos açudes em que se afogaram; ou visitam lugares em que viviam ou foram assassinados; ou de que, nas horas abertas, vagam pelos cemitérios.
Cadáver, para os romanos, era a carne dada aos vermes. Uma palavra formada pelas três sílabas iniciais da expressão romana caro data vermibus. Paulo Rónai diz que a versão é "fantasiosa". Quem sabe? Segundo crendice popular, o cadáver passa à eternidade sem as riquezas terrestres. E, por isso, é ainda hoje usual arrancar do morto seus dentes de ouro (para que a alma não retorne, depois, impedida de subir aos céus). Pela mesma razão, até a primeira Grande Guerra, militares tinham os botões dourados das fardas retirados, na hora do enterro.
A tradição portuguesa, por outro lado, manda pôr na boca do morto uma moeda de prata, como que pagando algum tipo de pedágio para a eternidade. Caronte, barqueiro dos infernos, exigia óbolos que, quando não pagos, condenavam o morto a vagar, em suas barcas, por cem anos de solidão. Bom lembrar que mãos soltas atrapalham a subida, razão pela qual é conveniente amarrar pulsos com terço ou rosário. Já pés devem estar sempre voltados para a porta da rua, inclusive no percurso em direção ao túmulo, uma posição que é o inverso daquela com que se entra no mundo. Para dar sorte. Já os poetas, conseguem enxergar beleza nisso. "Um cadáver não é trono demolido,/ Nem roto altar,/ Apenas prisão deserta" (Duelo), palavras de Salvador Diaz Miron.
Finados vem de fim, do latim finis; e, literalmente, quer dizer acabado, findo, finito. Mas está igualmente ligado ao sentido de perfeição; sendo, assim, também generalizadamente utilizado - finalidade, fino, refinamento. Com o que a ideia de perda acaba se convertendo, naturalmente, em saudade, impregnando-se de eternidade. Que finados é, sobretudo, um momento de confortadora intimidade. Das coisas que ficaram. Como se a mão misteriosa do destino preservasse, em nossas memórias, sobretudo os momentos bons de nossos mortos.
José Paulo Cavalcanti Filho, advogado
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