Os primeiros raios de sol entram pela fresta da janela que dá para a torre da histórica Matriz, em meio à tradicional névoa fria de julho, mês da padroeira da cidade, Senhora SantAna, e da celebração de sua emancipação política. Esses feixes de luz vêm com a alvorada da Banda, dos pássaros, logo se misturando com o badalar do sino que convoca, por três vezes, para a primeira missa do dia.
Volto novamente à infância, que, em essência, nunca saiu de mim. Já se disse que a infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto de nossos dias. Mesmo com tantas já vividas, estar em Luís Gomes é sentir emoções de momentos que eu não esqueci, detalhes de uma vida, histórias já contadas aqui e que, tantas vezes, compartilhei com os amigos que eu ganhei, pelas ruas onde andei, até chegar às pontes acolhedoras da Veneza dos Trópicos. É voltar ao começo!
Pois é, aqui estou vivendo novamente esse momento lindo. Emoções e recordações à flor da pele.
Lembro da novela-drama “Éramos Seis”, da obra de Maria José Dupré, assistida por toda a nossa família nos anos 70, na TV da sala. Na minha primeira infância, “Éramos Oito”: meu pai, minha mãe, minhas quatro irmãs, meu irmão e eu, o caçula. Hoje, 54 anos depois, a mesa continua digna e posta na velha casa; mas agora, da árvore primeva, somos apenas cinco. Meus pais e minha irmã do meio viraram saudades.
As horas seguem. Na cabeceira, o delicioso livro “Arroz de Palma”, de Francisco Azevedo, presente da querida amiga Teresa Duere. Leitura degustada a conta-gotas, torcendo para não chegar à “sobremesa”. Empolgado com o enredo, trouxe um exemplar para cada irmão. Tudo nele rima com família, recordações, encontros e despedidas, plataformas da estação central chamada vida. Nada mais apropriado para o meu momento. Uma breve degustação para o leitor que ainda não o saboreou: “Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema, principalmente no Natal e no Ano Novo.
Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência… Não se envergonhe de chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza… Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de engolir, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer… Família é afinidade, é à Moda da Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.”
Mas há uma passagem que me tocou profundamente considerando meu estado de espírito: “Demoramos décadas para perceber êxitos e fracassos. Quando, depois de muito esforço, nos tornamos mestres na arte culinária, quando, de olhos fechados, acertamos o ponto do doce, muitos já se foram. A família que se senta à mesa é outra. Já não somos netos, mas avós”.
Por um instante, lembro-me de Fernando Pessoa, quando, ao recordar o aniversário dos seus anos "casimirianos”, sentenciou que, naqueles tempos, ele “era feliz e ninguém estava morto”. Forte!
Ruminando sobre como o capricho divino e a bondade de alguns cuidam em propiciar eternidade em plena terra, sigo para a inauguração de uma unidade de saúde que recebeu o nome de minha irmã, Ilma, cirurgiã-dentista por mais de vinte anos na cidade.
Emoção pela justa homenagem, mas também porque jamais imaginaria sentir, tão cedo, essa saudade de um ser humano que, mesmo diante de tantas adversidades, era sinônimo de alegria e vida. No outro dia, a generosidade daquele povo dá o nome de meu pai, Valdecir Pascoal, à mais nova praça do aprazível lugar. No caminho, lembrando-me de suas principais virtudes – retidão de caráter, dedicação ao trabalho como farmacêutico, respeitado em toda a região, e obstinação, ao lado minha mãe, para educar, sem faltar, todos os filhos –, os conterrâneos falavam que eu estava, cada vez mais, parecido com ele.
Ao chegar em casa, perguntei ao “Velho Espelho” de Quintana: “Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu? Porém, seu rosto… é cada vez menos estranho… Meu Deus, Meu Deus… Parece meu velho pai - que já morreu! Como pude ficarmos assim? Nosso olhar - duro - interroga: "O que fizeste de mim?!" Eu, Pai?! Tu é que me invadiste, lentamente, ruga a ruga… Que importa? Eu sou, ainda, aquele mesmo menino…”.
Na volta para o Recife, na descida da serra, olhos marejados, pra variar. Mais uma vez, olho a janela, o horizonte e a liberdade da estrada, mas o som que toca ao redor é a música “Antes da chuva chegar”, de Guilherme Arantes, apresentada pelo amigo-irmão Dirceu Rodolfo: “Sinto agora que o vento / Traz coisas de longe de casa libertando a voz / São lugares perdidos / Imagens confusas de tempos que não voltam mais / E pessoas com quem convivi / Suas palavras, seus sonhos, seus atos / Seus modos de ver a vida /
Olha o que o vento traz antes da chuva chegar / Pela rua deserta e forrada / De folhas caídas que voam ao léu / Corre o meu pensamento / No rastro das nuvens pesadas que habitam o céu / Vejo a casa na qual me criei, vejo a escola, o jardim / Vejo a cara de cada um dos meus companheiros”.
Carregando o meu passado na algibeira, choro, sorrindo, em paz com a vida!
Valdecir Pascoal É Conselheiro do TCE-PE