OPINIÃO

Nova insegurança jurídica, novo dilema nacional

Muitos esperam que o STF continue entendendo que só pode ser considerado culpado quem tem contra si uma sentença penal condenatória transitada em julgado (princípio da inocência). Exigir o cumprimento da pena sem esta observância, nova insegurança jurídica reinará e a nossa Carta Magna será novamente vilipendiada, como já aconteceu no passado.

Cadastrado por

Adeildo Nunes

Publicado em 17/08/2023 às 0:00 | Atualizado em 17/08/2023 às 11:48
 Ainda hoje é praticamente unânime no seio da sociedade a equivocada percepção de que a prisão reduz a criminalidade
Ainda hoje é praticamente unânime no seio da sociedade a equivocada percepção de que a prisão reduz a criminalidade - NE10

Em fevereiro de 2016, de forma inesperada, inconstitucional e despida de legalidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal, apreciando o habeas corpus nº 126292-SP, por 6 votos a 5, resolveu autorizar o início da execução da pena privativa de liberdade, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, desde que a condenação tivesse sido mantida por qualquer órgão judicial colegiado. Aquela manifesta decisão absurda e, portanto, teratológica, surpreendeu o mundo jurídico, porque sempre fez parte da jurisprudência firme da Corte Suprema, que a execução da pena restritiva de liberdade só poderia ser iniciada quando esgotadas todas as oportunidades recursais, seja por parte da defesa, seja pela acusação. Naquela tarde fatídica e trágica, o pleno do STF desprezou, sem amparo jurídico, as regras constantes dos artigos 674 e 283 do Código de Processo Penal e 105 da Lei de Execução Penal e, para maior desalento da classe jurídica nacional e estrangeira, violou o princípio constitucional da presunção de inocência, uma conquista do povo brasileiro, depois de 20 anos de ditadura militar.

A autorização do cumprimento da pena com a prisão do acusado, antes dele ser considerado culpado, outrossim, trouxe uma enorme insegurança jurídica no País, ao ponto de alguns órgãos judiciais colegiados, durante o julgamento, já fazerem expedir mandado de prisão para o cumprimento da pena, quando ainda havia a possibilidade da oposição de embargos declaratórios. O ministro Roberto Barroso, em seu voto, defendeu a legitimidade da execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado, para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos por ele tutelados, ademais - enfatizou o ministro - "a presunção de inocência é princípio e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais que têm a mesma estrutura". Ora, o ministro Barroso, equivocadamente, esqueceu que a presunção de inocência é um valor relevantemente constitucional e humano, e que jamais não poderia ser tratado como um "simples apego constitucional". Em verdade, todos os princípios constitucionais estão sempre embutidos nas regras da Carta Maior e nas leis. Por isso, princípios e regras têm a mesma concepção jurídica.

Porém, graças à enérgica e sensata atitude da Ordem dos Advogados do Brasil e do Partido Nacional Ecológico, que ingressaram com ações declaratórias de constitucionalidade nºs 43 e 44, o mesmo plenário do STF, em dezembro de 2019, resolveu modificar o seu entendimento anterior, por sua maioria, quando declarou que o art. 283 do Código de Processo Penal era constitucional. Com o is so, a era da execução provisória da pena, com a imediata prisão do acusado, para fins de cumprimento da sanção penal, finalmente viu-se proibida, num momento de lucidez e de bom senso dos membros da mais Alta Corte do País.

Durante os mais de 3 anos de vigência da execução provisória da pena de prisão, sem dúvidas, o Brasil atravessou a maior insegurança jurídica de todos os tempos, mercê de uma atitude insensata e contrária à Constituição Federal de 1988 e às leis que regem a matéria. Nesse período, saímos de 650 mil presos, para 800 mil reclusos, tudo devido à ânsia desmedida por parte do egrégio STF, em 2016, sem contar que ainda hoje é praticamente unânime no seio da sociedade a equivocada percepção de que a prisão reduz a criminalidade e atenua problemas sociais. Pelo contrário, prisão, hoje, é sinônimo de violência e de aumento do crime. A punição aos que cometem ilícitos penais, não obrigatoriamente exige a aplicação da privação da liberdade. Existem outros meios e formas de punição que o próprio Código Penal autoriza e que o resto do mundo de há muito vem consagrando na lei e nos seus julgados.

Com a Lei Anticrime (13.964/2019), que entrou em vigor em 23.01.2020 e deu nova redação ao art. 492 do Código de Processo Penal (letra e), o Congresso Nacional e o presidente da República aprovaram a possibilidade de o juiz autorizar a custódia do réu, se decretar a prisão preventiva ou iniciar a execução da pena, quando a sanção aplicada for igual ou superior a 15 anos. A decisão sobre a inconstitucionalidade do art. 492, e, do CPP, com repercussão geral, novamente está nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Muitos esperam que o STF continue entendendo que só pode ser considerado culpado quem tem contra si uma sentença penal condenatória transitada em julgado (princípio da inocência). Exigir o cumprimento da pena sem esta observância, nova insegurança jurídica reinará e a nossa Carta Magna será novamente v ilipendiada, como já aconteceu no passado.

Adeildo Nunes, juiz de Direito aposentado, mestre e doutor em Direito, advogado criminalista, professor da UNISAOMIGUEL e membro da Academia Brasileira de Ciências Criminais - ABCCRIM.

 

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