Outubro-dezembro de 2022 foi trimestre de muito medo. Fatos e notícias de então traziam ecos políticos e policiais. Trocas de ideias com amigos alimentavam um quase pavor. Pessimismo escanchado na cadeira de Otimismo. Pesadelo em plena insônia - aquele que não precisa do sono para existir; aquele que turva sonhos. Acampamentos à frente de quartéis das FFAAs, bem aninhados e tolerados, adentrando o mandato do novo governo. E, em 24/12/2022 (!), a descoberta de uma bomba em caminhão de combustível, próximo ao Aeroporto de Brasília-DF. Por arte do acaso ou erro de quem perpetrou o atentado, não veio a explosão que poderia ter sido o gatilho da apregoada intervenção militar para garantir "Lei e Ordem"; e sabia-se lá aonde isso levaria o Brasil. Tudo embrulhado na retórica presidencial que arrotava ação "dentro das quatro linhas da Constituição" e ao mesmo tempo trazia desdém pela democracia, inclusive com calculada aleivosia contra a segurança das urnas eleitorais. O pacote completo - que inclui invasão e depredação, em 08/janeiro, de patrimônios-símbolo da democracia - escancarou a face do que não era mera liberdade de expressão. Tudo seguido (monitorado?) por um então "escondido" presidente que sequer cumpriu a formalidade de passar o poder ao novo governo - o chamado comportamento moleque.
Agora, nestes 10 meses do governo eleito em novembro 2022, os relatos do militar Mauro Cid compõem pauta de delação premiada que nos diz: o que então nos dava medo era coisa muito maior, mais perigosa. Bem mais do que parecia. Temos, de fato, o CQD ("como queríamos demonstrar") da tentativa de golpe de Estado. E pistas, que soam ser profundas, sobre possíveis responsáveis.
Ora, considerada a natureza e a baixa qualidade do conjunto da obra governamental de 2019 a 2022, se a ação do governo eleito em novembro 2022 não fosse além do óbvio a melhora já seria - relativamente - descomunal. O novo governo logo expressou - em conjunção com todos os poderes constitucionais - compromisso com a democracia. UFA! Era o esperado, claro. Escapamos.
Aí vem a responsabilidade na reconstrução. Complicação, sim e muita, dada a configuração política do Parlamento. Além de interesses escusos, uma aguerrida extrema direita.
Em economia, deve-se atentar para a realidade: paradigma não se muda por decreto ou vontade governamental. Gastos têm a devida importância. Responsabilidade fiscal não pode se ausentar. Política monetária também importa. Expectativas e comportamento dos agentes econômicos (inclusive o personagem 'Consumidor') são parte do processo. Aspectos básicos do funcionamento economia.
No campo da política, respeitar a democracia vai além de declarar apreço por princípios basilares. Certos erros não devem ser cometidos, embora o sistema seja capaz de compensar e reduzir danos. Mas, a ideia básica deve sempre ser a de minimizar erros, e buscar consertá-los, sempre que seja o caso.
E cabe notar que todos os votos eleitorais importam: os dos francos apoiadores, os contrários (dos opositores) e os "só tu, vai tu mesmo", porque o outro já se sabia, ao custo de grande desconforto, quem era e o que sabe fazer. Todos os eleitores devem ser respeitados. Não se deve dialogar apenas, ou preferencialmente, com a claque apoiadora.
Mas, vieram erros inesperados - em se tratando de um presidente com larga margem de experiência. De quem se espera maturidade, depois de tortuosa rota política. Primeiro, a demora em sair do palanque, mantidas insistentes referências ao derrotado. Segundo, o falar preferencialmente com os aguerridos apoiadores. Depois, uma arenga com o Presidente do Banco Central - saga quase que somente pessoal - com diatribes contra "a alta taxa de juros", a tal Selic. No entanto, cá estamos com juros em descenso, ao ritmo de decisões técnicas do Conselho de Política Monetária. O PIB, com projeção melhor do que se esperava, embora isso se deva a vários fatores, inclusive o desempenho do setor agrícola. E inflação que não assusta.
Mais preocupante é o que está se dando em área bastante delicada: as âncoras fiscais. Claro, em contexto em que negociações com diversos interesses no Parlamento trazem resultado não imputável apenas ao presidente. Mas a vertente dos gastos vai se expandindo, sem segurança de que receitas compatíveis com tal expansão terão lugar. Pior, na definição de instrumentos de responsabilidade fiscal, foi ainda mais enfraquecida a prudência inaugurada em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal: agora, abolidas as então instituídas penalidades para gestores públicos. Há contaminação de expectativas, trazendo insegurança sobre sustentação da relação dívida/PIB. Um temerário escorrego.
Por fim, um insulto à democracia. Trata-se do 'bebê de Rosemary' chamado Comitê de Defesa da Democracia (CDD). Algo que teve gestação no Senado e que, portanto, não pode ser imputado ao Governo e, muito menos, diretamente ao Presidente. No entanto, sabe-se que este é contumaz esbravejador contra "a mídia" e sonha com o tal de "controle social" da dita cuja. O Senado pode ser conveniente abrigo para esse jabuti. Isso, no país cuja democracia sobreviveu às tramoias aceleradas nos últimos meses de 2022; sim, um ente que efetivamente usou seus vários braços para estancar a aventura anti-democracia. Não tem pra quê um CDD.
O coletivo de cidadãos que exercem certo estoicismo, em que me incluo, vem segurando as pontas. "Esperemos para ver se melhora, quem sabe?". O Brasil precisa, sim, deixar de merecer a alcunha de 'perdedor de oportunidades'.
Tarcisio Patricio, doutor em Economia. Professor da UFPE, aposentado.