Um exercício de imaginação: e se Florbela e Pessoa tivessem sido amantes? O que seria da poesia?
A nós, amantes da literatura, Deus concedeu uma gota a mais de imaginação. Criamos e ampliamos o mundo real em devaneios que não cessam. Um de meus muitos é o fantástico encontro de Florbela Espanca com Fernando Pessoa, que viveram contemporâneos em Lisboa, e frequentavam os mesmos ambientes: o Chiado, a Brazileira, o Martinho da Arcada e o Martinho do Chiado, a Bertrand e a Livraria Inglesa (quem o assume, grifando a Brazileira com z, é Maria Lúcia Del Farra, em notável artigo sobre o tema, De Florbela para Pessoa). Não há registro de que se tenham conhecido. A literatura menciona algumas curiosidades, a exemplo do percurso que faziam, aparentemente nas mesmas ocasiões, e por motivos similares, mas não iguais, com seus amantes: Florbela com Antônio Guimarães, no início do namoro, porque ela estava no divórcio de seu primeiro casamento, e Pessoa com Ophélia, porque ele fazia questão de manter o relacionamento às ocultas. Os dois casais tomavam o elétrico em pontos diferentes no trajeto mais alongado, o do Dafundo ou do Lumiar ou do Poço do Bispo, e o percorriam por inteiro mais de uma vez, era quando se permitiam ficarem juntos, um encontro para ser fortuito e às escondidas. Teriam ficado no mesmo veículo em alguma hora? Os dois poetas elucubrando versos de clandestinidade amorosa? Não sabemos, mas pode ter acontecido.
Escreveu-se muito sobre as coincidências e vertentes literárias de um e de outro, o fato de terem publicado pela mesma editora, a participação na vida literária e política do país (foram os tempos mais turbulentos e politizados da história portuguesa moderna, marcado pela transição traumática da monarquia para a república, desembocando numa ditadura), e é sabido que Pessoa, após a morte de Florbela, publicou um poema em sua homenagem. O meu ponto aqui é distinto: como teria sido o encontro, o envolvimento, de Florbela com Pessoa? Homem e mulher, não os poetas (se podemos fazer a distinção). Ai, imaginação, segue solta, deixa de lado os nobres intuitos da literatura para fazer aquilo com que os espíritos maliciosos mais se deleitam: o mexerico. Se bem que aqui não há intuito de prejudicar, nem leviandade, trata-se de um verdadeiro desafio ao Fado, por que não os fizeste juntos e amantes, insondável destino?
Florbela se casou e se divorciou três vezes, fato raro na época, o que demonstra sua personalidade forte, liberta de amarras, disposta a enfrentar todos os preconceitos. Era uma mulher ardente, na busca incessante do amor, do Amado, do Prince Charmant, e não se exclua do amor o sexo, o desejo: frêmito do meu corpo a procurar-te, febre das minhas mãos na tua pele, que cheira a âmbar, a baunilha e a mel, doido anseio dos meus braços a abraçar-te. Enquanto isso, Pessoa não era lá muito interessado na vida sexual, e temos quase certeza, a partir de suas notas pessoais, de que morreu virgem. Ele se debateu com a própria sexualidade em seus escritos e poemas, há muita sensualidade e lascívia, por exemplo, em Antinous e Epithalamium, mas o amor e a atração sexual não estão presentes na vida do poeta, a não ser na medida em que a obra é a vida. Há mesmo especulações quanto a possível homossexualidade.
Que teria sido de Pessoa se o vulcão de Florbela lhe tivesse acendido as labaredas? E de Florbela, ao encontrar seu Amado, despindo-a do motivo? Ó, a cópula de Florbela com Pessoa! Aonde vais, alucinação, a agitar os versos que já estão escritos, por um e por outra, e que não seriam os mesmos depois desse encontro carnal que o destino evitou, para o bem ou para o mal da poesia? Mistérios insondáveis, do tamanho dos desejos. Florbela o pressentiu, pelo menos: Deus fez-me atravessar o teu caminho... Que conta dás a Deus indo sozinho, passando junto a mim sem me encontrares?
João Humberto Martorelli, advogado