Para a monarquia fazer sentido no mundo contemporâneo, precisa manter a aura da coroa britânica, carregada por longas décadas por uma rainha carismática e respeitada no mundo inteiro, Elizabeth II. Seu filho chega ao trono em idade madura, diferente da mãe, que assumiu a responsabilidade da liderança desde jovem. Em cerimônia cercada por tradições e comparações, Charles III foi coroado ontem, em Londres, sob o peso de um carisma que não possui, e a dúvida acerca do futuro da monarquia britânica depois da rainha Elizabeth.
A comparação imediata foi descabida e desproporcional: a coroação de Charles em relação ao funeral de sua mãe não poderia ser equiparável. Tanto pelo papel desenvolvido pela rainha ao longo da vida, quanto pela desconfiança de muitos ingleses em relação ao novo rei. A condução de dois legados está em jogo: o deixado pela rainha idolatrada, e aquele da própria monarquia, posto em xeque nos ombros de um rei desacreditado e sem carisma.
O sentimento de decepção gerado pela expectativa de um evento grandioso, com os ingleses lotando as ruas, pode ser revertida com o desempenho de Charles como monarca. Mas o que se espera do rei da Inglaterra? A pergunta suscita outras questões, chegando à natureza do poder monárquico e sua finalidade no século 21. Se for puramente simbólico, restará pouca coisa a exibir, sobretudo após o longo simbolismo associado à rainha Elizabeth II. Se o que se aguarda é disposição para a liderança, acima de controvérsias de governo – deixadas para o primeiro-ministro – Charles possui, de partida, um legado apreciado por muitos britânicos para dar continuidade.
O que se viu em Londres – ou não se viu – talvez seja um momento de dessacralização da monarquia, com repercussões ainda incertas sobre o exercício do poder no país. Mas para que isso se confirme, outras cerimônias de coroação hão de vir, para que os britânicos demonstrem o valor que dão à coroa e sua realeza. O crescimento do movimento antimonarquia parece estar no auge, agora. No entanto, essa condição pode ser potencializada pela falta de ligação dos plebeus com o novo rei. Caso contrário, a história da Inglaterra se depara com a possibilidade da crítica cada vez mais contundente ao Palácio de Buckingham.
O cortejo de chefes de Estado segurou a pompa da cerimônia, apesar da ausência do público esperado. Mesmo sem o dever de governar, o rei da Inglaterra é figura emblemática de inspiração para os súditos, e para líderes de nações não monárquicas. Sua semelhança com um líder religioso não se dá por acaso – papas e reis cumpriram caminhos paralelos durante boa parte da história. A importância da religião foi evidenciada na cerimônia de ontem. Com o desafio de renovar a fé dos britânicos na monarquia, Charles III começa o reinado sob a imensa sombra de Elizabeth, tendo que sair dela para se afirmar, na construção de um novo legado.