O coronavírus apresentou desafios grandes para a população global com o isolamento social, em diferentes níveis. Entre as inúmeras transformações que a pandemia impôs, talvez as mais abruptas foram nas formas de se relacionar. Enquanto o mundo de fora se afasta, dentro de casa os laços se estreitam com o confinamento. Para alguns casais, uma prova de fogo que tiveram que enfrentar e que gerou conflitos.
Compreensíveis, considerando a rapidez na adaptação que a situação demandou. O estresse acentuado também podem ter favorecido os atritos em casa, lembra o psicólogo Miguel Gomes. “Está todo mundo amedrontado com a pandemia, com medo de ficar doente ou de uma pessoa próxima vir a falecer”, comenta.
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“Quando você junta esse estresse aumentado por estar nessa situação de risco com o aumento do convívio forçado, é de se imaginar, e a gente vê em alguns países, que haja um maior nível de conflitos em casais, inclusive no maior número de divórcio”, afirma. Foi o caso da China, onde algumas cidades tiveram registros recordes de separações em março, após a quarentena.
Os que atravessaram juntos o momento tiveram a oportunidade aprender melhor sobre o parceiro e a acomodarem mutuamente suas necessidades.
Para a estudante Taynara Almeida, de 25 anos, o desafio foi lidar com o tempo de cada um. Em um relacionamento há aproximadamente 2,5 anos com o estudante Guilherme Santos, 23. Com a mãe enfermeira, ela se mudou temporariamente para a casa da família do namorado cerca de três meses atrás.
A mudança deixou o dia a dia do casal bem diferente do que era antes. “Na nossa rotina, cada um tinha suas coisas - faculdade, estágio -, eu na minha casa e ele na dele. E o fim de semana era nosso, era a hora de ficar junto, ver filme, sair, comer algo diferente. E meio que não tem mais isso. A gente está há três meses dormindo junto e acordando junto”, descreve.
Eles tiveram que respeitar as individualidades na medida em que passavam todos os dias juntos - processo que Taynara avaliou como positivo.
“Foi aprender com gostos, com manias e entender quando é a hora de ele ficar sozinho, de respeitar isso, e o momento de eu ficar sozinha, de pensar, de ficar triste”, conta. “Tudo isso foi uma coisa que a gente foi forçado a viver e que acho que foi muito bom para a gente. Ver o outro e ver como a gente se dá bem junto”, conclui.
De acordo com o psicólogo, essa adaptação é uma situação comum nos relacionamentos neste período de distanciamento social. “O momento exige mais dos casais, mais conversa, mais respeito às individualidades, pra poder passar por essa fase”, falou.
Outras questões permeiam a vida de quem está confinado com o companheiro. A divisão de tarefas domésticas é uma das outras reclamações que o psicanalista escuta no consultório e que chama a atenção.
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Finanças, tempo gasto no celular e frequência do sexo foram pontos mencionados em uma pesquisa da empresa de planejamento de casamento The Knot e do aplicativo de saúde de relacionamento Lasting como uns dos maiores motivos de brigas durante a pandemia.
Para Miguel, esses são temas sensíveis que, se já forem uma questão para o casal, podem se acentuar com os dois trancados no mesmo espaço. “O que acontece é uma acentuação de conflitos. Numa situação normal é mais fácil de lidar”, comentou.
A quarentena também intensificou a convivência entre a empresária Camilla Vieira, de 30 anos, e o músico e produtor Bruno Negromonte, 31, casados há 3.
Com uma filha de 1 ano de idade, a família se divide entre o home office, os serviços domésticos e os cuidados com o bebê.
Ainda assim, a rotina atribulada mesmo em casa não foi um problema em si. Ela, que costuma trabalhar em horário comercial e ele, à noite e em fim de semana, já tinham uma divisão de tarefas pré-estabelecidas. A pandemia exigiu uma reorganização, mas foi um processo que Camilla classificou como dinâmico.
Segundo a empresária, na verdade, tantos afazeres acabaram contribuindo para um ambiente de paz. “A gente não teve nem ter tempo para discutir, é tudo tão corrido”, riu. “Parecia que o dia não acabava. Fazer comida, lavar tudo… nossa filha tem muita alergia, e nessa época de chuva piora, então a gente tem que limpar mais do que normalmente. Se alguém saia, na volta fazia um ritual de higiene”, descreveu.
Mesmo assim, questões surgem e podem se transformar em conflitos. No caso dos dois, o assunto geralmente era relacionado à organização do lar. A resposta foi investir no diálogo para resolver sem briga.
Esse é o conselho dela para quem possa estar atravessando um momento de turbulência no relacionamento. “A base de tudo é a conversa”, resume. “O problema é que vários casais nao estao acostumados a viver tanto um com outro e não conversam com problemas no dia a dia. se teve alguma coisa incomodou, senta e conversa. Esclarecendo tudo, as coisas vão fluir”, diz.
A visão vai de acordo com a do psicólogo Miguel Gomes. As divergências, por si só, não são problemas. Pelo contrário. “É um equívoco achar que não vai haver conflito. E é um equívoco negá-lo e querer fazer de conta que não acontece nada”, define.
Para a relação sobreviver, diz, é preciso encarar o problema e criar instrumentos de solução de conflito. “Conversar e respeitar o tempo que o outro quer ficar sozinho. É necessário ter um nível de maturidade muito bom para conversar sem brigar e resolver problema sem jogar pra baixo do tapete.”
“Discutir com o parceiro é normal. O que acontece na pandemia é acentuação disso”, resume.