O cheiro da carne sendo preparada na panela de pressão indica que a família da dona de casa Valéria Souza Leão, de 43 anos, terá o que comer no dia. Desde que a pandemia da covid-19 se instalou, a moradora da comunidade intitulada “Escorregou tá dentro”, em Afogados, na Zona Oeste do Recife, não foi mais chamada para fazer faxinas e, de quebra, perdeu o benefício do Bolsa Família sem ter recebido explicações do porquê. Isso fez com que sua renda mensal se tornasse apenas R$ 41. Agora, ela e seus seis filhos terão que economizar os potes de margarina, ovos e o arroz guardados na geladeira, todos doados pela sociedade civil, até a próxima ajuda chegar.
O lar de Valéria não é exceção, mas a maioria. Pelo menos é o que diz uma pesquisa divulgada na última quinta-feira (15) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que mostra que 59,4% dos domicílios brasileiros relataram estar vivendo algum nível de insegurança alimentar, definido por falta de quantidade e de qualidade adequadas de comida, ou pela incerteza de que comerá amanhã. Desses, 31,7% demonstraram preocupação com a falta de alimentos ou o comprometimento da escolha e qualidade destes; 12,7% disseram não ter a quantidade necessária para moradores adultos, e em 15,0% dos casos há falta ou redução da quantidade de alimentos para crianças.
O levantamento também revela que a insegurança alimentar é mais grave em lares chefiados por mulheres (73,8,%), por pessoas pardas (67,8), pretas (66,8%), com crianças de até 4 anos (70,6%), renda per capita de até R$ 500,00 (71,4%), localizados nas regiões Nordeste (73,1%), Norte (67,7%) ou em áreas rurais (75,2%). Apesar de ainda não haver um recorte de Pernambuco, o estado também é afetado pelo problema. “Já acordamos para o almoço e deixamos um pouco para jantar à noite. Se tomarmos café da manhã, vai faltar depois. É horrível a sensação de não ter o que dar para o filho e para o neto”, relata Valéria.
Os resultados do estudo, feito entre novembro de dezembro de 2020, também revelam a redução de consumo de alimentos saudáveis durante a crise sanitária. Os que mais sofreram impacto foram: carne (44,0%), frutas (41,8%), queijos (40,4%), hortaliças e legumes (36,8%). Em contrapartida, o ovo foi a comida que teve a menor redução (18%) e o maior aumento no consumo (17,8%). “Este aumento pode estar relacionado à substituição do consumo de carne, alimento que sofreu a maior redução de consumo”, concluem os pesquisadores.
A necessidade da substituição de alimentos nos últimos tempos atingiu a técnica em enfermagem Soraia Leite, 55, que está desempregada há sete anos. “Com essa pandemia, temos que comer várias porções de frutas e verduras, só que isso é impossível aqui. A gente tenta se alimentar bem, mas a carne está caríssima. Se você não tem trabalho, você não tem dinheiro. Se não tem dinheiro, não vai comprar carne. E vai substituindo com outra coisa, como ovo cozido. Tem pessoas solidárias que sempre vêm e fazem doações. Mas, você não vai comer só quando a doação chegar. A gente precisa se alimentar todos os dias”, contou.
Após caminhar por uma calçada estreita e tendo as paredes das casas como apoio, já que qualquer deslize pode levar a uma queda no canal a céu aberto, encontra-se a aposentada Antônia dos Santos, de 74 anos. Na pequena residência de aproximadamente 5m², não há geladeira. Ao ser questionada pela falta do indispensável eletrodoméstico, ela responde: “para que ter, se não tenho o que guardar nela?”. A aposentadoria de R$ 1.110 é basicamente destinada à compra de remédios para a idosa, que sofre de uma série de comorbidades. “Esses dias, eu não tinha um saco de farinha. Recebi um de doação”, disse, apontando para o produto. “Não passei fome porque uma pessoa ajuda a outra. Se não fosse isso, eu passaria.”
Outro fator que influenciou na alimentação das famílias mais pobres durante a pandemia foi a inflação. Em março, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) registrou um aumento de 0,29% nos valores dos alimentos e bebidas no Grande Recife. A realidade foi sentida no bolso. “Eu fazia uma feira enorme, mas, ultimamente, desde o ano passado, não está dando para nada. Queremos comprar as coisas e não podemos, porque o salário não dura. Tudo está caro e acaba rapidinho. Senti muito o aumento no preço dos alimentos”, disse a aposentada Maria José, de 70 anos.
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A solidariedade entre os moradores da comunidade e de entidades que a ajudam é o que faz com que as pessoas não padeçam. Na Escorregou tá dentro, são 176 famílias vivendo em uma conjuntura desumana, em meio aos animais, à sujeira, e à fome. Várias das pequenas casas têm paredes rachadas, que ameaçam cair. Sem poder sair de casa pelos riscos à saúde, resta à população aguardar pelo socorro. Mas, por parte do poder público, os moradores afirmam não chegar. “Ninguém olha para a gente aqui”, denuncia Valéria.
O problema é que a fome não espera. Todo ser humano precisa de cerca de 1.700 calorias diárias para manter o metabolismo. Sem isso, o corpo absorve gordura. Depois, resta retirar energia dos músculos. Aos poucos, o cérebro perde a capacidade de comando. Cada órgão vai economizando energia. Ainda que esse processo seja revertido pela alimentação e não cause a morte, são deixadas consequências no organismo. “A falta de nutrientes importantes, como vitaminas e minerais, pode causar a redução da imunidade, e também anemia. Para as crianças, a exposição a longo prazo pode comprometer o crescimento e o desenvolvimento cognitivo”, explicou a professora do Departamento de Nutrição da UFMG Milene Pessoa.
A especialista ainda relaciona o consumo de alimentos não saudáveis ao surgimento de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, o que pode levar à sobrecarga do sistema de saúde. "A desnutrição e a obesidade podem aumentar o risco de adoecimento da população e doenças crônicas têm grande impacto na atenção primária", alerta.
Criado para reduzir o impacto da crise econômica durante a pandemia para autônomos e famílias mais pobres, o governo federal deu início, em abril de 2020, aos pagamentos do auxílio emergencial. Inicialmente de R$ 600, o benefício foi reduzido para R$ 300 e, em 2021, será de R$ 150 para a maioria das famílias. Na época, o dinheiro possibilitou que Cosma Maria dos Santos, 57, enchesse a geladeira. “Ganhei o auxílio no ano passado e comprei comida, mas não sei se vou ganhar mais”. Sem receber desde então, o cenário hoje já é bem diferente. Com as últimas chuvas no Recife, a casa onde mora alagou, e ela perdeu grande parte da doação de alimentos que ganhou. Ao abrir o forno, tudo o que há é uma colônia de baratas.
Saiba como ajudar
Para ajudar a Comunidade Escorregou Tá Dentro, basta entrar em contato com a movimentadora comunitária Soraia Leite através do número (81) 98702-3924. Confira outras iniciativas:
IJCPM de Compromisso Social
Para entrar em contato com a instituição, acesse www.ijcpm.com.br/contato
Cúria Metropolitana
Av. Rui Barbosa, 409, Graças, Recife, todos os dias, de domingo a domingo, das 7h às 17h, além de paróquias das igrejas católicas
Associação Vizinhos Solidários
Rua Souto Filho, 118, Pina
Armazém do Campo
Rua Imperador Dom Pedro II, 387, Santo Antônio
Para doações em dinheiro: Associação da Juventude Camponesa Nordestina - Terra Livre - Banco do Brasil | AG 0697-1 | CC 58892-X (outros bancos, substituir o X por 0)
PX: 09.423.270.0001.80
A Fome Não Pode Esperar
As doações podem ser feitas por depósito bancário na conta: Diocese de Palmares - CNPJ: 10.193.944/0028-04 - Banco do Brasil | AG: 3924-1 | CC: 40.629-5
Central de Cidadania
As doações podem ser feitas pelo site www.centraldecidadania.org/doe-contato
Cores do Amanhã
As doações podem ser feitas por depósito bancário na conta: Movimento Social e Cultural - Cores do Amanhã - CNPJ: 13.449.687/0001-9 - Banco do Brasil | AG: 4118-1 | CC: 20.766-7
Enche Panela
As doações podem ser feitas via vakinha.com.br/vaquinha/enche-panela
Núcleo de Apoio à Criança com Câncer (NACC)
As doações podem ser feitas pelo site www.nacc.org.br/como-ajudar/doacoes/