Violência policial em Pernambuco já devastou famílias com a morte cruel de jovens sem direito à defesa; relembre casos
No Recife, em Itambé e em Jaboatão dos Guararapes, famílias relatam a dor de viver com a ausência de parentes que morreram vítimas de policiais militares
Fevereiro de 2006, Carnaval. Catorze adolescentes são agredidos por PMs e obrigados a pular no Rio Capibaribe, no Centro do Recife. Dois deles, sem saber nadar, morreram. Março de 2017. Em um protesto de moradores por mais segurança em Itambé, na Zona da Mata pernambucana, um jovem de 21 anos é atingido por uma bala de borracha na perna, disparada por um soldado, a mando de um capitão. Depois de 26 dias internado em um hospital, o rapaz faleceu. Agosto de 2020. Um adolescente de 17 anos morreu após levar um tiro na nuca que partiu da arma de um PM, em Prazeres, Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife.
Três episódios em que houve violência gratuita da Polícia Militar de Pernambuco, assim como a que ocorreu contra manifestantes que participavam de um ato pacífico contra o governo Bolsonaro e a favor da vacinação em massa da população para se proteger da covid-19, nove dias atrás, em 29 de maio, no Centro da capital pernambucana. Três casos que devastaram as famílias porque além de acabarem em mortes, envolveram jovens vítimas de homens fardados e sem nenhum direito à defesa. Que causaram comoção e revolta na sociedade. E que revelam um longo caminho para que os envolvidos nos crimes sejam punidos.
CRUELDADE
Em Itambé, o caso que resultou na morte de Edvaldo da Silva Alves, quatro anos atrás, chocou o País pela crueldade e segue sem a prisão do comandante da operação, capitão Ramon Tadeu Silva Cazé. Em meio a um grupo de moradores que pediam mais segurança na cidade, o oficial apontou para a vítima e disse: "É esse que vai levar o primeiro tiro?". Em seguida, ordenou que um soldado disparasse a arma. Uma bala de borracha atingiu a perna de Edvaldo, que caiu. Após ser baleado, ele foi arrastado, sangrando, para a carroceria da viatura da PM e ainda levou um tapa no rosto, dada pelo capitão. As cenas foram filmadas por testemunhas.
No final de dezembro de 2017, Ramon Cazé foi expulso da PM, mas conseguiu reintegração por meio de decisão judicial. Atualmente ele está lotado no Batalhão da Guarda, que funciona ao lado do Palácio do Campo das Princesas, sede do poder Executivo estadual, no Centro do Recife. Na esfera criminal, a Justiça determinou, em novembro de 2019, que ele e o soldado que atirou fossem a júri popular. O policial recorreu e o recurso ainda não foi apreciado pelo TJPE.
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"Sinto muita saudade do meu filho. Edvaldo não merecia o que fizeram com ele. É uma dor que não passa. Todos os dias me lembro dele. Se estivesse errado, tudo bem. Mas trataram meu filho como um bicho. Além de atirar, ainda bateram na cara dele. Se o policial colocou uma farda é pra proteger as pessoas, mas o que fizeram foi um trabalho de bandido", comenta a mãe do rapaz, Sebastiana Santos, 55, que chora ao lembrar do caso. O violão de que o filho tanto gostava de tocar está guardado em cima do guarda-roupa. "Não tenho coragem de pegar nele", afirma Sebastiana.
Ela não acredita na punição do oficial que deu a ordem para atirar em Edvaldo. "Aqui na Terra não tem Justiça. Espero pela Justiça de Deus, é ele que vai julgar", diz Sebastiana. O governo repassa um salário mínimo por mês para a família como indenização. "Nenhum dinheiro paga a vida de Edvaldo. Pode ser milhões que não vão fazer meu filho voltar", lamenta a dona de casa.
DOR
A dor que Sebastiana sente é a mesma do serralheiro Cleiciano Lucindo Ferreira, 41, e da dona de casa Solange Pereira, pais de Jhonny Lucindo Ferreira, 17. O garoto levou um tiro na cabeça quando passava por uma blitz da PM, disparado por um sargento, há exatos dez meses. O adolescente estava na garupa da moto de um amigo. Trabalhava na serralharia com o pai e havia ido buscar uma ferramenta na casa de um parente.
A versão dos policiais é que os dois rapazes não atenderam ao comando de parar e que o adolescente que morreu estaria com um simulacro de uma arma. Testemunhas relatam que eles pararam e que Jhonny tinha apenas um celular. Ele ainda foi socorrido pelos próprios PMs, mas não resistiu.
Após a morte do filho, Cleiciano colocou as iniciais do rapaz no nome da serralharia. "O policial agiu de forma errada. Despreparado e com abuso de autoridade. Não podia ter atirado na cabeça do meu filho, como fizeram no protesto que teve no Recife", lamenta Cleiciano. "Tem dias que a saudade é tão grande que me afasto do serviço da oficina para chorar. Jhonny me ajudava, aprendeu a serralharia comigo. Queria ir para o quartel", conta o pai dele. "A Justiça está muito lenta. Espero que esse PM que fez isso com meu filho perca a farda", diz Solange.
A Secretaria de Defesa Social (SDS) informa que o caso está em investigação pela Corregedoria Geral. Foi instaurado um processo disciplinar para avaliar a conduta dos PMs, já que o sargento estava com um colega. Também houve um inquérito policial militar que resultou no indiciamento dos policiais. "Eles encontram-se afastados disciplinarmente enquanto aguardam o desfecho do processo na Auditoria de Justiça Militar Estadual", explica a secretaria. Paralelamente, o Ministério Público Estadual ofereceu denúncia do caso à Justiça. O processo criminal está na fase de instrução, informa a advogada Isabela Lima.
"Testemunhas relataram que Jhonny não esboçou qualquer atitude que representasse perigo. Ele e o amigo atenderam a determinação de parar.Como advogada, defendi que a promotoria acrescentasse qualificadoras, pois Jhonny levou um tiro pelas costas e sem qualquer chance de defesa. Mas o delegado e o Ministério Público entenderam diferente e enquadraram os policiais como homicídio simples, infelizmente", diz Isabela. Ela planeja, com a família do adolescente, ingressar com um processo contra o Estado pedindo indenização.
LONGA ESPERA
"A polícia erra muito. Não é todo mundo que é marginal. Em 2006 meu filho saiu para ver um show na segunda-feira de Carnaval e nunca mais voltou. O corpo dele foi encontrado no rio na Quarta-feira de Cinzas. Era trabalhador, vendia CD. A PM espancou os meninos e mandou que pulassem da ponte. Disseram que um deles roubou uma máquina digital. Nunca conseguiram provar", relembra a dona de casa Zineide Maria de Souza, 53 anos, mãe de Zinael José Souza da Silva, que tinha 16 anos. Diogo Rosendo Ferreira, 15, foi o outro jovem que morreu afogado.
Quinze anos depois, o caso ainda não teve um desfecho. O tenente Sebastião Antônio Félix, que comandou a operação, foi condenado pela Justiça pernambucana, em julho de 2015, por 11 tentativas de homicídio triplamente qualificados e dois homicídios triplamente qualificados consumados. O somatório das penas é de 150 anos e seis meses de reclusão. O oficial recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que não aceitou o recurso. O processo retornou, esse ano, para a 1ª Vara do Tribunal do Júri da Capital, que "tomará as providências cabíveis", informa o Tribunal de Justiça de Pernambuco.
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Segundo a SDS, o oficial está detido no Centro de Reeducação da Polícia Militar (Creed), em Abreu e Lima, no Grande Recife. Da PM, o tenente foi afastado em junho de 2006. Mas uma portaria publicada em maio do ano passado, assinada pelo então secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, determinou que Sebastião Félix retornasse aos quadros da Polícia Militar para atividades administrativas. Coincidiu com o período em que houve relaxamento da prisão. Em liberdade, ele chegou a assumir uma função, mas fugiu para o Pará no mesmo mês. Foi descoberto durante uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. Voltou preso para Pernambuco, novamente para o Creed.
"Pela memória de meu filho, para provar que ele era inocente, pode demorar, mas vou lutar até o fim para que esse tenente pague pelo que fez", afirma Zineide. Ela também briga para receber do governo estadual uma indenização no valor de R$ 350 mil por danos morais e materiais, estipulada pela Justiça em dezembro de 2015. O governo de Pernambuco recorreu, mas o TJPE manteve a condenação em outubro de 2016. Mais uma vez o Estado recorreu, desta vez ao STJ, que igualmente manteve a indenização, decisão que saiu em maio de 2018.
Atualmente, o processo está na fase de execução no TJPE. Significa que voltou para a vara inicial, da primeira instância, onde será novamente julgado. Ainda cabe novo recurso por parte do Estado. "Há um longo caminho ainda pela frente, deve levar alguns anos para que a indenização seja paga, caso a Justiça mantenha a decisão. O governo de Pernambuco ainda está pagando precatórios (indenizações) de 2011, ou seja, com um atraso de 10 anoss", explica o advogado do caso, Afonso Bragança. "O Estado, infelizmente, parece que faz as coisas para desestimular que as pessoas entrem com as ações pois sabe que demora, procrastina e entra com recursos", observa Afonso.
COTIDIANO
Para o advogado Roberto Leandro, presidente da Comissão de Direito Parlamentar da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco, a violência da PM, como ocorreu no dia 29 de maio, não é um caso isolado. "É muito triste dizer que embora toda a população esteja chocada com o que aconteceu no dia 29, quem atua em movimentos sociais em Pernambuco não está surpreso. Porque isso ocorre, em alguma medida, de forma cotidiana", afirma Roberto.
"Na última década, por exemplo, se a gente for fazer um recorte, em 2012 houve um processo muito parecido de repressão aos movimentos de luta contra o aumento das passagens de ônibus no Recife. O Ocupe Estelita, nas desocupações, vivenciou cenas também muito parecidas. O mesmo nos atos de Fora Temer", observa Roberto Leandro.
"Para quem está na luta do campo é ainda mais cotidiano nos acampamentos e assentamentos do movimento sem terra. E para quem está em comunidades, em favelas, em áreas periféricas, não só do Recife mas em outras cidades, o caráter violento e truculento da Polícia Militar é ainda mais comum. E nesses casos não é com bala de borracha, é com bala de chumbo mesmo, quando os danos são ainda mais irreparáveis", comenta o advogado que atua na defesa dos direitos humanos.
PROTOCOLOS
Para Edna Jatobá, coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), é preciso definir princípios que unam a ação da polícia com o a defesa dos direitos humanos. "O governo precisa ter autoridade perante a polícia. A polícia precisa agir dentro dos protocolos operacionais padrão que já existem, que sejam alinhados com os princípios de respeito aos direitos humanos", ressata Edna.
"As organizações da sociedade civil entregaram ao governo uma minuta de decreto na última quinta-feira (03) que visa estabelecer esses princípios da atuação da força policial em manifestações. A gente espera que se houver vontade política para que as coisas mudem, esse decreto seja assinado o mais rápido possível. E que se faça todo um acompanhamento da atividade policial não só nos protestos, mas como ela acontece dentro de espaços populares", diz Edna.
"A polícia de Pernambuco é preparada para o controle de multidões. Pernambuco tem eventos como o Carnaval, o Galo da Madrugada, eventos grandiosos com mais de um milhão de pessoas nas ruas e existe todo um protocolo de atuação e você não vê essa violência e essa intenção de machucar, de ferir. Em relação ao ato do dia 29, esperamos que tudo seja apurado, que todos os envolvidos de todos os níveis de comando sejam responsabilizados e que a sociedade possa acompanhar mais de perto. E que o Ministério Público, a partir da Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial, possa estar bem atento para que eventos como esse não virem cenas do nosso cotidiano", enfatiza a coordenadora do Gajop.
APURAÇÃO
Por meio de nota, a SDS destaca que em todos casos que envolvem policiais "tanto a Corregedoria Geral da SDS como a Polícia Militar atuam com rigor, seriedade e isenção buscando os esclarecimentos das denúncias e a devida responsabilização. Não há, dentro dos órgãos correcionais do Estado, condescendência com atos que infrinjam códigos de conduta e ética das corporações, além da orientação clara de salvar vidas e preservar a integridade das pessoas. É importante ressaltar que infrações disciplinares, especialmente as que envolvem violência, são cometidas por um pequeno grupo de policiais, quando analisamos todo o universo de profissionais da PMPE", assegura a secretaria.
"Ao longo dos anos, a Corregedoria tem fortalecido e aprimorado sua atuação, não apenas coibindo, mas fazendo inspeções nas unidades policiais e emitindo orientações preventivas. Considerando o período de janeiro de 2019 a maio de 2021, foram abertos 515 processos disciplinares. Nesse período, foram concluídos 518 processos – isso porque foram concluídos processos abertos nesses três anos mais uma parte de procedimentos que haviam sido iniciados em anos anteriores", informa o órgão.
Ainda de acordo com a SDS, em 2020, 121 processos foram concluídos pela Corregedoria, que avaliaram a conduta disciplinar de 187 militares. Desses, 32 foram condenados, sendo apenas dois deles em investigações por violência policial.