Deslizamentos de barreira no Grande Recife: o drama de quem vive uma tragédia anunciada

No Recife, sete famílias deixaram suas casas nesta terça-feira (10). Em Jaboatão dos Guararapes, mesmo local onde morreu família neste ano vê a terra desabar novamente. No Cabo de Santo Agostinho, dois muros e quatro barreiras caíram. As histórias contadas ano após ano mudam apenas as vítimas
Katarina Moraes
Publicado em 10/08/2021 às 16:43
DESASTRE Seis casas foram atingidas, e a história se repetiu no Grande Recife. São várias áreas de risco e pessoas convivendo com o medo Foto: BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM


Junto aos dois filhos, Levi da Silva e Ana Paula Tenório deixaram para trás a vida que tinham na Rua Cabo Hermito Sá, no Brejo da Guabiraba, na Zona Norte da capital pernambucana. A casa da família foi uma das seis atingidas no local por um deslizamento de barreira na madrugada desta terça-feira (10) - que acabou com três pessoas levemente feridas. O incidente ainda rendeu a interdição - por risco de desabamento - das três únicas residências que se mantiveram em pé. Aos moradores desabrigados, a Prefeitura do Recife prometeu um auxílio no valor de R$ 1.500. O medo, todavia, continua a imperar em quem teme ter o nome na história que é escrita ano após ano nas muitas áreas de risco nas diferentes cidades da Região Metropolitana.

Entre os feridos no deslizamento do Brejo da Guabiraba, esteve um adolescente de 16 anos que ficou preso nos escombros e foi resgatado duas horas depois pelo Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco. Ele, o pai - o motorista Clebson Barbosa -, e uma mulher identificada como Clécia da Paz foram socorridos até o Hospital da Restauração (HR) pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) com ferimentos leves. "Quando nós chegamos, duas pessoas já tinham sido retiradas por populares, e um adolescente ficou sob os escombros de uma das casas", relatou o capitão do Corpo dos Bombeiros Kleber Dutra.

“Foi a gente passando, e a casa caindo em cima. Eu gritava como louca: ‘cadê meu filho?’. Se não fosse a minha cunhada e o meu irmão, que começaram a gritar para eu sair e levantar, eu estava morta debaixo dos escombros”, relatou a dona de casa Ana Gracy, mãe do adolescente. No local, nesta manhã, geladeira, fogão, sofás e outros pertences se misturavam aos destroços do que antes eram paredes. O auxiliar de produção José Francisco precisou entrar em casa por um buraco feito na parede para salvar o que sobrou dos móveis, colocados nas casas dos vizinhos.

Levi relatou o sentimento que teve ao pensar que as pessoas que moravam na casa debaixo da sua tinham sido soterradas. “A casa de cima cedeu, caiu com tudo, depois a nossa desabou, pegando a outra casa de baixo, onde morava outra família. Eu e minha esposa nos desesperamos e pensamos que o pessoal de baixo tinha morrido. Foi uma enxurrada de barro, com geladeira, televisão, tudo caindo e desabando. Nosso menino começou a gritar e a chorar", contou.

Os moradores alegam que as chuvas não teriam causado o rompimento da barreira; mas sim um cano da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) que teria estourado. “Um cano da Compesa que passa da cozinha para a minha sala se rompeu, e foi muita água. Esse rompimento fez com que a barreira descesse”, disse José Francisco. Entretanto, a gerente geral de Defesa Civil do Recife Keila Ferreira afirma que ainda é cedo para dizer o que provocou a queda. “A gente não pode dizer que foi o cano da Compesa porque isso ainda está em análise. A gente precisa tirar um pouco desse material, analisar o solo e também, de repente, fazer uma análise conjunta com o órgão competente".

Rompimentos na tubulação teriam sido, inclusive, a causa do deslizamento que resultou em sete mortos e três feridos, no Córrego do Morcego, no bairro de Dois Unidos, Zona Norte do Recife, em 24 de dezembro de 2019, conforme informou a coluna Ronda JC."Ligações clandestinas ao longo da tubulação rompida e a presença significativa de água no solo, acúmulo de lixo e ocupações irregulares” foram apontados como alguns dos fatores em relatórios conclusivos da Compesa.

Por nota, a Defesa Civil do Recife disse que recebeu 12 chamados da população nesta madrugada, e alegou que o investimento total da Prefeitura do Recife na Ação Inverno é de R$ 96,6 milhões, “incluindo contenção de encostas, prevenção e monitoramento em áreas de risco, colocação de lonas plásticas e eliminação de pontos de alagamento, entre outras”. Disse também que, atualmente, totaliza 409 obras nos morros. “O Programa Parceria tem 253 obras em andamento, beneficiando 879 famílias, e concluiu outras 118, que garantem mais segurança para 535 famílias”. Estima-se que 67% da área da cidade corresponde a morros.

Segundo a Apac, um canal de umidade favoreceu a ocorrência das chuvas no Estado nos últimos dias, com destaque para o Cabo de Santo Agostinho (que acumulou 145mm de precipitação), Jaboatão dos Guararapes (125mm), Olinda (122mm), Recife (97mm) e Ipojuca (81mm). Contatadas, as prefeituras atribuem os estragos às chuvas - já previsíveis, visto que a Agência Pernambucana de Águas e Climas (Apac) havia enviado um alerta nessa segunda-feira (9) sobre a permanência de precipitação com intensidade de moderada a forte na Região Metropolitana e na Zona da Mata. As gestões também pontuam quantas lonas plásticas foram colocadas ou repostas neste ano; medida emergencial que evita - mas não impede - os deslizamentos de terra.

O engenheiro e integrante do Grupo de Recursos Hídricos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Jaime Cabral explicou ao JC que a geografia das cidades do Grande Recife facilitam o acúmulo de água, e que o ideal seria que as áreas de morro não fossem habitadas ou modificadas, para que suas estruturas não se deslocassem. Entretanto, serviços de drenagem e escoamento podem evitar a queda das barragens, segundo ele. "É importante que a água tenha caminhos de descida de modo que ela não encharque o solo porque, se ele fica mole, pesado, perde a consistência e pode deslizar. As pessoas também não podem construir casas nesses caminhos", disse.

Outras ocorrências na RMR

Na cidade vizinha de Jaboatão dos Guararapes, a dona de casa Nanci Alzira da Silva desabafa: “Todo inverno é a mesma coisa, a gente já não suporta mais. O povo não dorme aqui. Esse lugar é esquecido, é um caso sério. Os capins estão altos, as escadarias sujas, ninguém limpa. As crianças ficam com medo nas ruas porque as barreiras estão todas caindo. Essa é a nossa situação. Está um perigo, só Jesus para ter misericórdia desse povo. A prefeitura só aparece para colocar lona, que serve para quê?”. Sobre a casa de uma vizinha, em Sucupira, uma barreira também caiu.

O estrondo acordou a dona de casa Ana Claudia dos Santos, 31 anos, na manhã desta terça-feira (10). De sua cozinha, havia sobrado apenas os destroços. Ela teve a residência condenada, e agora precisará morar com a mãe. Sua fala à reportagem não era de indignação ou de desespero, mas de conformismo; de alguém que já esperava que isso fosse acontecer, hora ou outra. Na cidade, há 13.963 pontos de risco, segundo a gestão municipal, onde moram cerca de 20 mil pessoas. A cidade registrou 21 ocorrências nas últimas 24h, entre deslizamentos, queda de árvores e árvores em risco de queda.

Na Rua Rio Botafogo, no bairro de Cavaleiro, também em Jaboatão, a história se repete. A terra caiu na casa onde estavam mãe e filha de 7 anos. “Como [a casa] era toda murada e cimentada, até então não víamos risco”, disse o professor Carlos Eduardo, pai da menina. Com a estrutura vizinha comprometida, o promotor de vendas Manoel Ribeiro, morador da área, agora teme pela própria segurança. “Isso também pode ser um risco para as casas vizinhas. Aqui tem várias barreiras, a Defesa Civil precisa estar mais presente”. O órgão municipal fez uma vistoria no local e disse que vai avaliar a interdição da residência.

“Nessa época de chuva, a gente não tem sossego, porque são muitas barreiras. Às vezes, a gente não consegue nem dormir, pensando no que pode acontecer amanhã. Esse plástico que botam já não serve mais no próximo ano, porque o sol resseca”, disse o enchedor de cilindro de gás, Édson José. Em maio deste ano, no mesmo bairro, pai, mãe, filho e filha morreram soterrados em uma casa na 6ª Travessa Murilo Braga durante as chuvas. Outras 28 famílias jaboatonenses ficaram desabrigadas.

A Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes informou que as famílias afetadas nesta terça foram removidas para casas de parentes e que foi feito encaminhamento para que a Secretaria de Assistência Social e Cidadania as acompanhasse. Além disso, disse monitorar permanentemente as áreas com “orientação e sensibilização das pessoas sobre riscos de desastres, bem como processo de remoção de famílias com indicação para auxílio-moradia”, e que a gestão “tem realizado intervenções estruturais para Redução de Riscos de Desastres (RRD), com investimento de mais de 25 milhões em ações estruturais nos morros, além de ações como a Operação Inverno”.

No Cabo de Santo Agostinho, foram registradas 11 ocorrências até a manhã desta terça pela Defesa Civil. Entre elas, quatro foram quedas de árvores, duas quedas de muros, a interdição de trecho da Rodovia PE-28 - onde o piso cedeu, formando uma enorme cratera - e quatro deslizamentos de barreira. Apesar disso, segundo a gestão, não havia desabrigados no município, formado por 85 pontos de risco, onde moram 25.527 famílias. “Estamos, desde fevereiro, com a Operação Inverno, monitorando as áreas de risco e realizando a limpeza e aplicação de mais de 94.000m² de lonas plásticas. Aumentamos em mais 400% o atendimento de cortes e podas de árvores em situação de risco, além de vistorias em edificações e barragens do município”, alegou.

Em Camaragibe, um muro de alvenaria de tijolos cerâmicos deslizou e tombou nesta terça, mas não atingiu residências ou pessoas.  Na cidade há 64 setores de risco, e 95.339 pessoas moram em morros. Segundo a prefeitura, 14 famílias foram retiradas de áreas de alto risco e encaminhadas no início das chuvas para casa de familiares. "A Defesa Civil atua na prevenção, com colocação de lonas plásticas em pontos de alto risco, além da construção de muros de arrimo, revestimentos com tela argamassada e sistemas de drenagem. A gestão aguarda a chegada de recursos federais para a realização de mais obras de prevenção."

Proteção

A Defesa Civil do Estado informou que equipes permanecem em alerta 24h e podem ser acionadas por meio da Central de Operações pelos telefones 199 e 3181-2490. O Corpo de Bombeiros pode ser acionado pela população em caso de emergência, pelo telefone 193.

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