Alice Viana, 6 anos, está com saudade do seu gato preto, chamado Menino. O bicho ficou na comunidade do Cajá, na Iputinga, Zona Oeste do Recife, onde ela mora com a mãe numa casa de um vão só, que dois anos atrás era uma cocheira. Com as chuvas que castigaram mais a Região Metropolitana e a Zona da Mata pernambucana, elas precisaram deixar o local às pressas, como fizeram tantos outros moradores do Grande Recife. Desde sábado (28), o endereço de Alice e sua mãe Dayse Costa, 34, é outro: sala 12, segundo andar da Escola Municipal Diná de Oliveira, também na Iputinga.
É na sala de aula transformada em moradia provisória que as duas estão vivendo. Dividem o espaço com outras três famílias, vizinhas da mesma comunidade. A Diná de Oliveira é o maior abrigo mantido pela prefeitura - 196 famílias.
Até esta quarta-feira (1º), a capital contabilizava, segundo dados oficiais, 3.828 desabrigados ou desalojados. Nos 34 abrigos criados emergencialmente pela gestão municipal para socorrer as vítimas das enchentes estão cerca de 3.600 pessoas. Desse total, 1.500 se acomodam em 17 colégios municipais.
Não é fácil juntar tantas pessoas que não estavam acostumadas a viverem tão próximas e sem laços familiares num mesmo espaço. Os desafios são desde a manutenção da higiene ao respeito ao silêncio e à privacidade.
Nesta quarta-feira, na fila do café da manhã, enquanto esperavam para comer, os moradores ouviram um apelo de um dos voluntários, o estudante de farmácia Guilherme Carvalho, 36. "Gente, tinha muito côco e xixi nos corredores. Não dá. A escola é um patrimônio nosso, muitos filhos de vocês estudam aqui. Temos que cuidar", pediu Guilherme.
IMPROVISO
Sem chuveiros nos banheiros, os moradores improvisam com banhos tomados com água colhida da pia. São cerca de 600 pessoas circulando pela escola - 500 desabrigados e 100 que vão apenas fazer as refeições. Para atender tanta gente, foram colocados seis banheiros químicos. A limpeza nesses espaços é feita três ou quatro vezes ao dia. E mesmo assim não dá conta: mal cheiro de urina, poças d´água, bacias sanitárias entupidas ou sem descarga.
"É como uma pequena cidade. Tem brigas de vizinhos, reclamações, gente sem ter o que fazer. Definimos algumas regras, como horário das refeições. Há café da manhã, almoço e jantar, além de lanche em cada turno. A divisão das famílias nas salas foi feita pelos próprios moradores. Não intervimos nisso. O que estamos buscando é atendê-los da melhor maneira possível", garante o coordenador do abrigo, Tota Faria.
ATIVIDADES
Para entreter a garotada nos abrigos - um terço dos 3.600 desabrigados nesses locais é de crianças - foram organizadas oficinas e recreação. "Essas crianças estão longe de casa e da rotina escolar. As brincadeiras ajudam a ocupar o tempo. É uma ação também pensada na família pois enquanto elas estão nas atividades, os pais podem resolver coisas ou mesmo tentar colocar a cabeça no lugar", ressalta a secretária executiva da Primeira Infância, Luciana Lima.
Na Diná de Oliveira foi montado ainda um mutirão para retirada de documentos e uma sala de atendimento médico. No refeitório estão guardadas as doações que chegam avulsas ou enviadas pela prefeitura. Conforme a necessidade, a coordenação do abrigo solicita à central de donativos montada no Terminal Marítimo de Passageiros.
SAUDADE
"Tem hora que é muita bagunça aqui no abrigo, mas ainda bem que na nossa sala está tranquilo. Passo o dia quase todo sem sair da sala. A alimentação é boa, tem chegado doações de roupas. Mas é muito ruim ficar longe de casa", diz Dayse, que vai com a filha tomar banho na casa de um parente. Dayse salvou fogão e geladeira, mas não sabe se vão funcionar. A água, no sábado, quase cobriu sua cabeça.
"Estou desnorteada porque de repente perdi tudo que comprei com tanto esforço. Tem sido difícil. Na segunda-feira fui com Alice na nossa casa. Ela disse: 'mamãe, dá uma vontade de chorar'. E dá mesmo", comenta Dayse, que havia conseguido um emprego de manicure na sexta-feira, véspera do maior temporal.
"Esperei tanto, uma expectativa tão grande para trabalhar. A chuva destruiu minha casa e não pude mais ir para o salão trabalhar. Mas não posso fraquejar. Por minha filha, tenho que enfrentar e recomeçar a vida", garante.
COBRANÇA
A maior preocupação de Dayse e de tantos moradores desabrigados é a mesma: como reconstruir a vida. "Precisamos de auxílio-moradia ou de ajuda para voltar para nossas casas. Até quando vamos ficar nessa escola e deixando tantas crianças sem estudar?", questiona Guilherme Bezerra, 19, morador da Favela do Detran e um dos desabrigados.
"Um deputado veio no abrigo e comentou que viveu a enchente de 1975. São quase 50 anos e o sofrimento das famílias virou rotina, sempre esperando pela próxima enchente. Isso mostra a incompetência desse deputado e de outros gestores públicos. A população não aguenta mais porque falta o mínimo que é uma moradia digna", destaca o outro Guilherme.