O desabamento de mais uma barreira no Vasco da Gama e o afogamento de uma mulher quando tentava atravessar o Túnel do Jordão alagado, por conta das chuvas, comprovam, na prática, o resultado de um estudo inédito do Instituto Pólis. Divulgado nesta quarta-feira (3), o trabalho mostra que Recife, São Paulo e Belém são as cidades que mais expõe famílias de baixa renda e pessoas negras a riscos ambientais.
Nessas capitais, as populações estão mais vulneráveis a riscos de inundações, deslizamentos de terra e doenças transmitidas pela água.
Desde o final de maio, quando começaram a cair chuvas acima da média histórica, Pernambuco contabiliza 134 mortos. É a maior tragédia das chuvas no Estado, atrás até da famosa enchente de 1975.
A equipe de pesquisa analisou indicadores sociais das três capitais e bases de dados para compreender quem são e onde vivem as populações mais afetadas por riscos ambientais agravados pelas mudanças climáticas.
Padrões de renda, raça/cor da pele, gêner e local em que se vive definem quem são as pessoas mais vulnerabilizadas a eventos intensificados pela crise ambiental, como inundações e deslizamentos de terra.
Os mesmos grupos populacionais, de acordo com os dados da pesquisa, também são os mais afetados por problemas de saúde coletiva, como surtos epidemiológicos de veiculação hídrica ou vetorial, decorrentes da precariedade dos sistemas de fornecimento de água e tratamento de esgoto e amplificados pela crise climática.
A pesquisa mostra que essa maior exposição a riscos da população vulnerabilizada se repete nas três capitais analisadas, levantando a questão que o problema se repete em diferentes contextos urbanos brasileiros, e revelando sua relação com os modelos desiguais de urbanização, assim como a negligência sistêmica do poder público em planejar e intervir nas situações de maior precariedade.
Impactos diferentes para pobres e ricos
As áreas de risco nas cidades são caracterizadas pela maior concentração de pessoas negras, de baixa renda e famílias chefiadas por mulheres com renda de até um salário mínimo.
Essas regiões são definidas por locais onde a probabilidade de ocorrência de algum evento, como inundação de um corpo d’água ou deslizamento de terra, implica um perigo real, com potencial de destruição, de perdas materiais ou até de vidas, quando consideradas as condições de ocupação do território e a baixa capacidade de resiliência desses grupos.
De maneira inversa, as localidades onde há pouco ou nenhum risco mapeado, as proporções de pessoas brancas e de mais alta renda são maiores.
Parte das áreas de risco está em “aglomerados subnormais”, categoria utilizada pelo IBGE para classificar comunidades de baixa renda, favelas e palafitas. As características e o perfil dos aglomerados subnormais nas três cidades estudadas ilustra como a ocupação de áreas de potencial risco são apropriadas pela população vulnerabilizada como alternativa para a questão habitacional.
Nas três cidades estudadas, o percentual de pessoas negras que residem em aglomerados subnormais supera as médias demográficas dessa população em cada município, evidenciando a tendência de concentração desse grupo nesses territórios.
Em São Paulo, Recife e Belém, são centenas de milhares de domicílios em aglomerados subnormais. Grande parte desse universo está em áreas de encostas ou em margens de córregos, rios ou lagos.
As situações de risco nas cidades demonstram que as populações negras e de baixa renda são as mais expostas a inundações (risco hidrológico) ou a deslizamentos (risco geológico).
No Recife, os riscos ambientais estão vinculados tanto a perigos hidrológicos, de inundação dos rios, quanto a geológicos, de deslizamentos de terra em áreas de maior declividade. O risco de deslizamento se concentra nas áreas de menor renda da Caxangá, do Ibura e dos morros da Zona Norte.
Ao todo, são 677 áreas com risco geológico. A renda média é de R$ 1,1 mil por domicílio, menos do que a metade da média municipal, a proporção de pessoas negras é de 68% e a taxa de domicílios chefiados por mulheres de baixa renda é de quase 27%.
As áreas com risco de inundação, embora apresentem um perfil demográfico relativamente diferente, também se diferenciam do resto da cidade. Elas se concentram nas áreas de mangue em bairros como Afogados, Jardim São Paulo, Ibura e Areias.
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A população, majoritariamente negra, soma 59% do total – no município, é de 55%. A renda domiciliar é de R$ 2,1 mil, sendo que a média municipal é de R$ 2,7 mil. Nas áreas com risco de inundação, 22,1% das residências são chefiadas por mulheres que ganham até um salário mínimo, enquanto a média recifense é de 19,7%.
“O estudo mostra que os impactos ambientais nas cidades são socialmente produzidos: não são apenas fruto de eventualidades climáticas, mas sim resultado da negligência do poder público”, afirma Ana Sanches, pesquisadora do Instituto Pólis. “A distribuição das consequências desses impactos se dá de forma desigual no território urbano. Esse desequilíbrio é, em parte, a expressão da injustiça socioambiental e do racismo ambiental nas cidades”, completa.
O estudo aponta que as situações de risco ambiental nas cidades são consequências do planejamento, da gestão e das políticas públicas, que distribuem recursos de forma desigual nas cidades e reiteram padrões de ocupação racializados. Parte da solução, aos impactos da crise ambiental no território urbano, passa por mudanças dentro dos espaços institucionais de poder.
O aumento da representatividade política nos executivos e nos legislativos tende a melhorar e qualificar as políticas sociais, ambientais e urbanas de combate às desigualdades e injustiças. Atualmente, mulheres, pessoas negras e de baixa escolaridade são os grupos mais sub-representados na política brasileira.
Vulneráveis mais expostos aos riscos de saúde
A crise climática e seus impactos ambientais nas cidades não se expressam apenas pela exposição desproporcional de grupos vulneráveis a riscos geológicos ou hidrológicos. No contexto urbano, há efeitos desiguais para a saúde coletiva, que são observados nos casos de internações por doenças infecciosas de veiculação hídrica e doenças vetoriais, cujo risco de infecção está diretamente relacionado à ausência, ou precariedade, dos serviços básicos de saneamento.
Nas três cidades, casos de doenças de veiculação hídrica prevalecem em crianças de até 14 anos, em Belém são 98,4% das internações, no Recife são 68,6% e em São Paulo, 66,4%. Em relação à raça, constata-se que a população negra de Belém (66% dos casos) e do Recife (64,1%) é a mais acometida. Das hospitalizações nessas duas cidades por agravamento de doenças vetoriais em 2021, 51,5% e 53%, respectivamente, também eram pretas ou pardas.
O acesso precário e desigual ao abastecimento de água e à coleta de esgoto ajudam a entender o quadro. Dados do Censo 2010 mostram que apenas 30,3% dos domicílios localizados em aglomerados subnormais de Belém, e 40% no Recife, são atendidos pela rede geral de esgoto.
Embora os dados epidemiológicos de doenças de veiculação hídrica e de doenças vetoriais em São Paulo não indiquem um perfil específico da população atingida, é importante ressaltar que a cobertura da rede de esgoto em aglomerados subnormais da capital paulista atende apenas 2 de cada 3 domicílios (67,4%). Trata-se de uma cobertura muito insuficiente que também penaliza territórios de mais baixa renda, onde predominam famílias negras.
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