O barulho da barreira estralando acordou Julia Lima, 26 anos, durante a madrugada da última semana. Dessa vez, não era real; foi apenas um sonho — que se repete com constância desde quando sua casa foi arrastada pela terra em 28 de maio de 2022. "Acordei chorando como criança", contou.
Seis meses após a tragédia das chuvas em Pernambuco, que deixou 133 mortos, a permanência do estado de vulnerabilidade nas áreas de risco e a impossibilidade de reconstruir a vida e de lidar com o luto têm gerado um problema invisível: o adoecimento mental dos sobreviventes.
Em Jardim Monte Verde, comunidade com 32 vítimas localizada entre Jaboatão dos Guararapes e o Recife, funcionários de postos de saúde que não quiseram se identificar contaram ao JC que tem sido comum a chegada de pacientes com problemas de saúde relacionados ao trauma.
"Muita gente está morrendo de estresse por úlcera e os casos de tentativa de suicídio aumentaram, principalmente entre adolescentes. Eu mesma estou adoecida, não sou mais a mesma", disse uma das servidoras.
O pai do motorista de ônibus Reginaldo Ramos Feitosa faleceu em 19 de novembro. A causa da morte: úlcera estomacal, que pode ser provocada, segundo informou o médico à família, pelo sistema nervoso.
Era, segundo Reginaldo, saudável, ativo e alegre, mas passou a desenvolver uma série de doenças após a tragédia. Foi o 13º familiar dele a morrer desde as chuvas. Hoje, o motorista teme pelo estado de saúde da mãe, que está acamada há meses.
A emergência da saúde mental em Jardim Monte Verde foi reportada durante audiência promovida pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), realizada em 8 de novembro, e por coletivos que construíram um dossiê popular sobre as chuvas , divulgado no último dia 16.
"Para além da necessidade de reparação dos imóveis, a imensa maioria pedia por atendimento psicológico, com falas muito fortes de que preferia ter morrido a passar pelo que está passando agora", contou o articulador territorial e representante da Fase, Rud Rafael.
Psicóloga especializada em neuropsicologia e psicologia cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Taciana Feitosa explica que é dever do Estado intervir na situação, a fim de assegurar condições de dignidade, de lazer, proteção e saúde — inclusive mental — às vítimas.
"As intervenções precisam acontecer do ponto de vista emocional, de forma a habilitar pessoas a lidar com situações difíceis e a ajudar nesse processo de elaboração e de construção de novas saídas; mas também dentro do contexto físico, para que saiam dessa condição estressora que pode ser geradora de doenças", afirmou.
As crianças têm sido as mais afetadas — segundo contam os moradores. "O filho da vizinha não pode ouvir a chuva cair que começa a chorar e gritar pedindo para sair de casa", disse a autônoma Corina Maria da Silva, 62. "As pessoas estão doentes e abaladas, porque muitos estão morando de favor e tirando de onde não tem para pagar aluguel, e não aparece médico, nem um psicólogo para esse povo".
Um exemplo é a filha de 9 anos de Julia. Vivendo de doações, a mãe chegou a conseguir um emprego em um shopping, mas precisou se demitir para cuidar da menina. "Ela tinha que ficar na casa da minha família, mas o olho dela estava ferindo de tanto que ela coçava, porque tinha sono, mas não conseguia, só chorava pedindo pelas coisas que ela perdeu. Tive que colocá-la como prioridade."
MEDO IMINENTE
A maioria dos óbitos no Grande Recife foram causados por deslizamentos de terra — que acontecem anualmente na região, ainda que em menor proporção que em 2022 — que são consequências não só das chuvas, mas de um mal planejamento urbano e de um descontrole habitacional. Por isso, o trauma não vem só da lembrança de um episódio triste, mas da iminência de novos incidentes.
O arquiteto e urbanista Zeca Brandão, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pontua que tais tragédias são causadas por um mau planejamento urbano da RMR, e que a falta de "infraestrutura e controle urbano têm interferência direta nesse tipo de desastre e são responsabilidades do poder público".
Assim, em um contexto de mudanças climáticas e aquecimento global, que fizeram com que as chuvas fossem 20% mais fortes, segundo estudo da World Weather Attribution (WWA), a tendência é realmente piorar "caso não haja um resgate urgente do planejamento urbano pelo poder público para o enfrentamento dessa nova realidade global", concluiu Zeca.
Todavia, depois de 184 dias, a maioria das barreiras em Monte Verde segue descoberta, com destroços, grande parte dos moradores voltaram para as casas onde viviam pela impossibilidade de pagar por uma outra moradia e há dezenas de outras desocupadas em risco de desabamento que ainda não foram demolidas pelo poder público — principalmente na área que pertence a Jaboatão.
As reclamações pelos critérios rígidos para recebimento do auxílio emergencial, que incluiu apenas a população de baixíssima renda, também são constantes — já que a não chegada dos valores têm dificultado a reconstrução da vida mesmo para quem é empregado.
"Tiraram-nos de casa há seis meses e até agora não recebemos nada. A gente fica no escuro sem saber o que vão fazer. [...] Será que ninguém vai ser culpado por isso? Vão passar o pano por cima? E as mortes que ocorreram? É muito revoltante o que está acontecendo", disse o autônomo José Natalício, 56.
O déficit habitacional no Estado - que chega a mais de 320 mil unidades - e do Recife - cerca de 70 mil, segundo último levantamento - é também refletido no Jardim Monte Verde. Há uma ocupação desordenada de moradias nos morros, que ameaçam uma queda inverno após inverno, e de famílias sem ter para aonde ir.
Há 22 anos, cerca de 120 famílias afetadas por um deslizamento de barreira que aconteceu nos anos 2000 na parte recifense da comunidade, aguardam a construção de um conjunto habitacional então prometido pela Prefeitura do Recife - que nunca chegou.
Em Monte Verde, é difícil até mesmo saber para quem pedir ajuda, já que está no limite entre as duas cidades e nem mesmo os moradores sabem de qual fazem parte. As correspondências chegam com endereços diferentes para as mesmas casas, e os mapas digitais apontam que são em Jaboatão áreas consideradas como Recife, e vice-versa.
"Até a tragédia, morava no Recife. Mas quando tudo caiu, passaram a dizer que eu morava em Jaboatão. Até o momento, não tivemos assistência", disse Corina. No local onde vivia o filho que morreu aos 38 anos pelo deslizamento, cultiva flores, velas e faz orações diariamente para que a própria realidade mude.
O que diz o poder público
Por nota, a Prefeitura do Recife afirmou vir realizando um apoio às equipes de saúde da Unidade de Saúde da Família (USF) Monte Verde, com objetivo de dar suporte clínico e pedagógico no manejo das situações de saúde mental no território.
Ainda, que técnicos de saúde mental realizam atividades para apoiar os profissionais atuantes no local para melhor condução, acolhimento, acompanhamento e monitoramento dos casos e que pessoas que estão em estado de sofrimento mental podem procurar sua unidade de saúde de referência, que será avaliada e referenciada de acordo com sua necessidade.
Já a Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes disse manter plantões psicológicos em Jardim Monte Verde, Dois Carneiros Baixo e Bola de Ouro, com atendimentos individuais ou em grupo e disponibilização de acolhimento em saúde mental aos profissionais da prefeitura. Ainda, que, havendo aumento da procura, haverá fortalecimento do serviço.
Ambas as cidades também anunciaram medidas de prevenção a próximas tragédias, quantidade de pessoas atendidas pelo auxílio emergencial e futuras obras. Confira:
Nota da Prefeitura do Recife
Ações estruturantes - Para garantir resiliência urbana, com intervenções integradas nas áreas de saneamento, pavimentação, proteção de encostas, construção de espaços de convivência e obras de macrodrenagem na bacia do Tejipió, a Prefeitura do Recife informa que está em curso o maior programa de requalificação urbana e social e de resiliência da cidade. Trata-se do Programa de Requalificação e Resiliência Urbana em Áreas de Vulnerabilidade Socioambiental, o ProMorar Recife, que receberá investimentos da ordem de R$ 1,3 bilhão para garantir obras de infraestrutura em 40 comunidades, incluindo as mais atingidas pelas chuvas do mês de maio e, entre elas, Jardim Monteverde. A iniciativa vai beneficiar, diretamente, mais de 500 mil pessoas. As ações do ProMorar serão financiadas por meio de operação de crédito entre a Prefeitura e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e, desde outubro, a comunidade de Jardim Monteverde foi uma das primeiras a receber os processos de consultas públicas junto à população feitas pela Prefeitura do Recife e por técnicos do BID.
Além das intervenções previstas no ProMorar, que foram objeto de consulta pública junto à população de Jardim Monteverde neste mês de outubro, a comunidade está sendo beneficiada pelas obras de contenção de encostas das ruas Pico da Bandeira e Chapada do Araripe, já iniciadas. A obra da rua Monte Pascoal, por sua vez, está em fase final de elaboração de projeto e será licitada em seguida. Outros pontos de Jardim Monteverde onde foram feitas obras nas encostas nos últimos anos foram as ruas Morro do Pilar, Maurício de Nassau, Lírio dos Vales e Rosa de Saron.
Além disso, a Prefeitura do Recife está executando um pacote de contenção definitiva de encostas em 30 áreas de risco da cidade, com investimentos na ordem de R$ 60 milhões e também serão feitos investimentos nas comunidades de Jardim Monteverde e Vila dos Milagres, cujas barreiras serão reestruturadas e ganharão serviços de contenção e drenagem. Na Vila dos Milagres, as obras de contenção de encostas serão realizadas nas ruas Paralela e Milagres e irão beneficiar 100 famílias. O projeto já foi elaborado e a obra está em fase de licitação. O investimento neste local será de R$ 12 milhões.
Em ação conjunta com o Governo de Pernambuco e a Câmara Municipal de Vereadores, a Prefeitura do Recife criou o Auxílio Municipal e Estadual (AME), no valor de R$ 2.500,00 para ajudar as vítimas das chuvas. Atualmente, 21.830 famílias já foram beneficiadas - ultrapassando mais de 80 mil moradores do Recife - e os recursos chegam a ordem de R$ 54,6 milhões. O benefício contempla famílias que: 1) morem em áreas afetadas mapeadas pela Defesa Civil e Assistência Social; 2) atendam ao perfil do CadÚnico; e 3) habitem em Comunidades de Interesse Social (CIS) de áreas alagadas. A normativa também é amparada na Lei Estadual 17.811/ 2022, que estipula que as famílias devam estar cadastradas no CAD Único do Governo Federal.
Em paralelo à criação do AME, a Prefeitura do Recife, em esforço conjunto com a Câmara Municipal, também ampliou o valor do auxílio-moradia em 50%, subindo de R$ 200,00 para R$ 300,00 mensais. Em função da maior tragédia climática da cidade, 1.540 famílias foram incluídas no benefício por perdas totais ou parciais dos imóveis, com investimentos mensais da ordem de R$ 462 mil. Ao todo, na cidade, 7.174 pessoas são beneficiadas com o AM. Destas, 377 famílias beneficiárias do Auxílio Moradia são de Jardim Monteverde em decorrência das chuvas de 2022. O benefício não está vinculado a perfil de Cad Único, mas é concedido aos munícipes cujas moradias foram interditadas por apresentarem riscos.
Saúde - Em relação ao atendimento de saúde psicossocial, a Secretaria de Saúde (Sesau) do Recife informa que, após as fortes chuvas que acometeram a cidade em maio deste ano, já foram realizadas ações de suporte emocional aos trabalhadores e à comunidade do Jardim Monte Verde, sendo ofertados grupo terapêutico com os agentes comunitários de saúde (ACS), grupo de cuidado psicossocial às crianças e adolescentes e atendimento na comunidade e nos abrigos temporários.
Desde então, a Sesau vem realizando, através do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) David Capistrano, no Ipsep, o apoio matricial às equipes de saúde da Unidade de Saúde da Família (USF) Monte Verde, com objetivo de dar suporte clínico e pedagógico no manejo das situações de saúde mental no território.
Uma vez por mês, técnicos de saúde mental do Caps realizam atividades para apoiar os profissionais atuantes no local para melhor condução, acolhimento, acompanhamento e monitoramento dos casos. O David Capistrano é um serviço especializado da atenção psicossocial da Prefeitura do Recife, que realiza atendimento às situações de crise e intercorrências em saúde mental, recebendo usuários dos Distritos Sanitários 6 e 8 - esse último que é o território onde estão inseridos os munícipes de Jardim Monte Verde.
Durante o primeiro mês de atuação, em junho, no período de atendimento emergencial pós-chuvas, foram realizados 82 atendimentos individuais, 4 atendimentos em grupos e 15 atendimentos grupais aos profissionais ACS. Também durante esse período, com o diagnóstico local realizado, foram disponibilizados plantões diários para a população e as demandas de maior complexidade encaminhada para o nível de saúde responsável.
A Sesau reforça ainda que as pessoas que estão em estado de sofrimento mental podem procurar sua unidade de saúde de referência, que será avaliada e referenciada de acordo com sua necessidade. Sobre o formato de mutirão para atendimento, a Sesau esclarece que não é recomendado para intervenção em saúde mental pós-desastre, considerando a necessidade de um acompanhamento contínuo e sistemático.
Nota da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes
A Prefeitura do Jaboatão, por meio da Coordenação de Saúde Mental, vem prestando apoio psicológico às vítimas das últimas enchentes, desde o período emergencial. Na ocasião, o município chegou a firmar Acordo de Cooperação com a organização internacional Médico Sem Fronteiras, que durante 60 dias colaborou com os cuidados à saúde da população. Além da presença constante dos profissionais de saúde mental em abrigos (inclusive psiquiatras) e contato direto com familiares das vítimas, foram implantados plantões psicológicos presenciais semanais nas sete comunidades mais atingidas. Atualmente, as equipes mantêm os plantões em Jardim Monte Verde, Dois Carneiros Baixo e Bola de Ouro, com atendimentos individuais ou em grupo. Havendo aumento da procura, haverá fortalecimento do serviço. Também houve disponibilização de acolhimento em saúde mental aos profissionais da prefeitura.
As 375 famílias abrigadas receberam o Auxílio Emergencial Municipal de R$ 1,5 mil, criado pelo município, totalizando R$ 558 mil. Já o Auxílio Emergencial Pernambuco teve os R$ 18,6 milhões encaminhados pelo Estado repassados integralmente a 12.409 famílias. E novos recursos foram solicitados ao Estado (ainda em análise), para atender outras 902 famílias cadastradas. Também foram cadastrados 32.392 endereços na Caixa Econômica Federal para receber recursos do FGTS. E 601 famílias foram inseridas no Auxílio-moradia municipal.
Grupo de Trabalho multisetorial criado pelo prefeito do Jaboatão dos Guararapes, Mano Medeiros, se reuniu, na terça-feira (22), no Complexo Administrativo, com lideranças da comunidade de Jardim Monte Verde, em Dois Carneiros, e representantes do Ministério Público do Jaboatão, convidados pela gestão para discutir futuras intervenções no local, principal atingido pelas últimas enchentes. Monte Verde está passando por um levantamento topográfico total da área, para um trabalho inédito de projetos de contenção integrados a ações ambientais, educativas e de urbanização, a serem construídas junto com os moradores, a fim de evitar novas tragédias na comunidade. A ideia é fazer um projeto-piloto a ser levado para as outras áreas de morro. Para isso, foi montada uma comissão com lideranças e estamos nos reunindo com moradores e já trabalhando na preparação das áreas.
No total, o MDR liberou R$9,3 milhões no plano de restabelecimento do município, incluindo assistência social, limpeza, recuperação de pontes, vias e prédios públicos e demolições de 111 imóveis de crista de morro (o topo) e R$ 2,2 milhões para obras de contenção de encostas e construção da Ponte do Engenho Santana. Outros R$ 50 milhões estão empenhados para muros de arrimo, restando a liberação de R$ 36 milhões. Em termos de Contenção de encostas, em outubro foram entregues cinco muros de arrimo, outras 121 obras serão iniciadas na primeira quinzena de dezembro e mais 12 serão licitadas em breve, totalizando 138 obras de contenção, das quais 39 serão em Monte Verde.
Entre os projetos encaminhados ao Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), está a construção de 308 imóveis para as famílias que tiveram seus imóveis destruídos ou precisam ser demolidos. O órgão pediu detalhamentos individualizados que estão sendo realizados para reenvio da solicitação. O município também vem trabalhando em outros projetos habitacionais voltados para esse público, inclusive já teve a garantia de doação de 35 imóveis pela Construtora Viana & Moura.
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