A comunidade científica e a sociedade civil têm pleiteado, nos últimos dias, a revogação da lei que doou cerca de 8 mil m² do Espaço Ciência, que fica na divisa entre Olinda e Recife, para instalação de um centro de tecnologia. Ao JC, o especialista em direito público Antônio Ribeiro Junior explicou que é possível atender o pleito, seja por iniciativa do executivo ou do legislativo.
A lei de nº 17.940 foi aprovada em regime de urgência na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) e sancionada em 21 de outubro sem ampla divulgação. A população só soube da medida após mobilização do próprio diretor do museu, Antônio Carlos Pavão, que recebeu com surpresa uma intimação para retirar os equipamentos presentes na área doada.
Segundo Ribeiro, a Alepe pode fazer um projeto de lei alegando o desinteresse na doação, ou apenas pedindo pela revogação da lei aprovada, "ainda que não haja motivo aparente", ou que até mesmo o governo pode propor a revogação para a Alepe deliberar e aprovar ou não.
Como condição para doação, a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (ADEPE), sociedade de economia mista que recebeu o terreno, deve instalar um data center e a construção de um “landing station” para receber cabos submarinos. Caso isso seja descumprido, a administração pública também pode reaver o bem, de acordo com ele. Todavia, até que isso acontecesse, o Espaço Ciência já teria sido desmembrado.
O advogado pontua algumas questões importantes para quem pretende revogar a lei. Algumas delas são o objetivo de conceder exatamente o terreno descrito e a comprovação de que ele é o melhor lugar para isso.
"Há algum estudo científico ou técnico que comprove que esse lugar é único ou o melhor para a instalação desse data center ou a construção de um “landing station” para receber cabos submarinos"? É importante que se verifique com base em que dados o Estado está doando o bem - se em mera discricionariedade à pedido da empresa ou com base em dados técnicos, específicos", pontuou.
Ribeiro expôs que, caso tais pontos não estejam bem esclarecidos, é possível propor, inclusive, uma "representação no Tribunal de Contas do Estado, com pedido de Medida Cautelar para suspender a doação, até análise mais adequada do caso".
Governador discute doação
O governador Paulo Câmara (PSB) se reúne, na tarde desta segunda-feira (21), com equipe para discutir a doação de parte do terreno onde fica o Espaço Ciência. A conversa acontece após três dias de mobilização contra a medida.
Estará presente o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação de Pernambuco, Fernando Jucá, que afirmou por telefone ao JC, sem especificar o teor da reunião, que deve vir "notícia boa".
Nesta manhã, diversas entidades se reuniram na Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pernambuco (ADUFEPE) para organizar manifestações contra a medida. “Tivemos a orientação de fazer um documento de apoio ao Espaço Ciência pedindo pela revogação da lei. Já os estudantes vão mobilizar a causa nas redes sociais”, afirmou Pavão.
Participaram da conversa, além da ADUFEPE, a Associação Amigos do Espaço Ciência, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Pernambucana de Ciência, a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), entre outras.
O movimento iniciado pela própria equipe do museu fez o Governo de Pernambuco divulgar, no último sábado (19), que compensaria a perda do terreno do Espaço Ciência em que substituiria o terreno perdido pelos mesmos 8 mil m² no lado sul da instituição, em área contígua pertencente à Empetur.
Todavia, a proposta não agradou, já que o museu tem uma didática cronológica, com cada espaço pensado para um melhor aprendizado. "Quem pensou nisso não tem noção do que é o Espaço Ciência, nem do que é um museu. Isso é uma falácia - inventaram para tentar se livrar [das críticas]. Isso nunca foi acordado", pontuou Pavão.
O Espaço Ciência é um dos dois únicos museus científicos ao ar livre no mundo e recebe cerca de 100 mil visitantes ao ano. Ele é dividido em cinco áreas: água, movimento, percepção, terra e espaço - sendo a área chamada “espaço” a atingida pela medida. Nela, são desenvolvidas várias atividades de divulgação científica como confecção e lançamento de foguetes, oficinas, observação do Sol.
Nessa parte, ainda há equipamentos como o Avião Xavante, maquete do VLS-Veículo Lançador de Satélite, Giroscópio Humano, para atividades de Arvorismo, minifoguete, busto de Santos Dumont, edifício de Apoio, ponte sobre o Canal, pista de aviação, dentre outros.
A Academia Pernambucana de Ciências (APC) publicou uma nota considerando a doação como “inaceitável”. “O Espaço Ciência tem um papel extremamente relevante na educação cientifica, na difusão e popularização da ciência, sendo objeto de cooperações com escolas públicas de Pernambuco e espaço de formação cidadã dos estudantes desde o ensino básico ao ensino superior”, pontuou.
Patrimônio de Burle Marx é atingido
A falta de informações sobre as mudanças no Espaço Ciência, localizado no Memorial Arcoverde, entre o Recife e Olinda, ainda preocupa arquitetos e urbanistas envolvidos com o projeto original. Ele é, hoje, uma das poucas partes preservadas do projeto idealizado pelos renomados paisagista Burle Marx e arquiteto Acácio Gil Borsoi em 1986 - e que nunca foi finalizado pelo Governo de Pernambuco.
Co-autor do projeto, o arquiteto e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Luiz Vieira, afirmou que ele está inscrito em uma área de proteção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que não permite a construção de imóveis na área verde. “É um patrimônio da humanidade, paisagístico, arquitetônico e urbanístico.”
Junto a Vieira, o também arquiteto Antônio Borsoi adaptou o projeto do pai e o transformou no Espaço Ciência. Ele conta que o Iphan deu uma autorização para a construção de pequenas edificações em caráter excepcional, pela “causa nobre” delas.
“Fizemos um conjunto que lembra uma grande coberta para desenvolver atividades de ensino e de reflexões, simples e vazadas. Qualquer ameaça de outras construções nessa área vai desfigurar o espaço”, disse.
Especialista em paisagem, a arquiteta e também professora da UFPE Ana Rita Sá Carneiro explica que o vazio ali existente é necessário para “conectar e ao mesmo tempo separar as duas cidades”. “Não sabemos que escala haverá, mas sempre houve a necessidade de não haver edificações. Deveríamos preservar ao máximo aquele espaço”.
Em 2020, a Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur) garantiu, em reportagem do JC, que um plano de requalificação do Memorial Arcoverde estava em andamento. Atualmente, todavia, o espaço permanece degradado e subtulizado, sem qualquer mudança aparente.
O que disse a Secti-PE
"A Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti-PE) esclarece que o Espaço Ciência não vai sofrer qualquer perda em seu patrimônio. Os 8 mil metros quadrados suprimidos da parte norte do terreno - que possui 120 mil metros quadrados no total -, serão substituídos igualmente por 8 mil metros quadrados no lado sul da instituição, em área contígua pertencente à Empetur. Todos os equipamentos e mobiliários existentes na área desmobilizada serão transportados e remontados na nova localização, sem qualquer prejuízo às atividades.
A cessão do terreno foi feita para a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco – ADEPE, através de negociação com o Governo do Estado, para a chegada de um cabo submarino de fibra ótica com capacidade de transmissão de dados da ordem de terabytes. Este cabo vai aumentar a velocidade da internet em todo o estado de Pernambuco, incrementando a competitividade do setor produtivo, além de atender às demandas da sociedade. Qualquer construção necessária para abrigar os equipamentos referentes à operação do cabo submarino obedecerá a legislação vigente."