A primeira morte por deslizamento de barreira do ano em Pernambuco em Águas Compridas, em Olinda, na última segunda-feira (6) fez mais um alerta ao poder público: é urgente a atuação de um comitê de crise que alerte, previna e suporte a população durante as chuvas enquanto uma grande reforma urbana não é feita na Região Metropolitana do Recife.
Nove meses após a tragédia do último ano, que deixou 134 mortes no Estado, o Governo de Pernambuco e as prefeituras das cidades mais afetadas não colocaram em prática um plano efetivo para o inverno de 2023 - que, segundo a Agência Pernambucana de Águas e Climas (Apac), deve ser tão severo quanto o último.
O que há, até então, é o desenvolvimento de projetos. Na capital, ainda começará a ser implementado um sistema de monitoramento de movimentação piloto, em apenas uma região. Em Jaboatão dos Guararapes, em 15 pontos.
Ambas as iniciativas, financiadas pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe), são louváveis, mas contemplam uma mínima parcela do território e ainda não saíram do papel diante de um verão que vem registrando dias de grande precipitação.
Um exemplo da urgência é que a barreira que vitimou o jovem Israel Campelo dos Santos, de 19 anos, na última semana, estava contemplada no projeto de implantação de geomantas pela Prefeitura de Olinda - que será executado em março.
Ele se soma às 128 mortes em decorrência das chuvas em 2022 só no Grande Recife, fora as incontáveis perdas materiais. Um dossiê formulado por organizações sociais apontou que as vítimas eram de maioria pretas e pobres, que viviam em regiões impróprias para moradia pelo baixo custo de vida no local.
Nele, especialistas defendem que a solução para o problema envolve políticas de longo prazo, que necessitam de recursos estaduais e federais, como a urbanização das áreas de risco - mais de 2 mil no Estado, segundo estudo de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ainda, a redução do déficit habitacional - acima de 320 mil unidades, de acordo com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) -, além do constante monitoramento, pela Defesa Civil, contra a ocupação irregular em áreas que devem permanecer inabitáveis.
“A conversa de ações que devem ser feitas de médio a longo prazo é falada há muito tempo; já deu tempo de serem feitas. Se não começarem agora, nunca vão chegar”, pontuou o arquiteto e urbanista Vitor Araripe.
Contudo, há medidas emergenciais que podem - e precisam - ser colocadas em prática até abril, quando começa o período de maiores acumulados de chuva no litoral pernambucano e na Zona da Mata, para que novos “Israel” não apareçam nas manchetes dos jornais como vítima das chuvas - quando, na verdade, são vítimas do descaso.
Antônio Celestino, representante do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) - uma das associações que integraram o estudo - avalia que a ação do poder público foi pífia até então, e que essa deveria ser uma “demanda prioritária”.
“Imagino que, se a família de Israel tivesse sido avisada com tempo, talvez tivesse conseguido se retirar. Precisamos ter ações que resguardem a vida das pessoas enquanto a realidade delas não é transformada por projetos”, pontuou.
Entre as propostas, estão a criação de uma rede de abrigos emergenciais para acolher desabrigados e desalojados; a implementação de sistema de sirenes que avisem, por sinais sonoros nas áreas de risco, que há possibilidade de fortes chuvas, como foi feito em Petrópolis, no Rio de Janeiro; de simulações de evacuação nas comunidades em perigo; e ações de conscientização com os moradores.
“Falta vontade política para evitar novas mortes. O problema é que todo o pensamento da política urbana é permeado por uma visão mercadológica e por um racismo ambiental, que acha que as pessoas optam por estar ali”, comentou Antônio, relembrando a fala do secretário de Defesa Civil de Olinda, que lamentou que as pessoas "resistam em sair dos morros" logo após a confirmação da morte.
Até então, somente o Recife tem um mecanismo para disparar, por SMS, um alerta de chuvas. Para Araripe, entretanto, é preciso estreitar o contato; e ter uma abordagem mais própria, in loco, com a população.
Nas comunidades visitadas pelo JC, atingidas por deslizamentos, foi possível ver que muitas das famílias que haviam desocupado a área voltaram para as mesmas casas - muitas condenadas - após os recursos do Auxílio Pernambuco, que assistiu às vítimas, acabarem.
Uma delas é de Andreia Nascimento, de 33 anos, moradora do “Córrego do Desastre”, em Camaragibe. Desempregada e mãe solo, viu parte da própria casa cair nas últimas chuvas. "Tive que voltar porque os R$ 1,5 mil acabaram [...] Onde quiserem me botar, eu vou; desde que não seja em barreira", pediu.
É por casos como esse que Vitor defende que haja uma reformulação do auxílio aluguel, já que, mesmo o mais alto - de R$ 300, da Prefeitura do Recife - não é suficiente para se mudar para uma casa fora de perigo. “Isso pode ser uma forma de garantir que essas pessoas não fiquem em situação de risco quando as chuvas chegarem.
Diante do cenário, a presidente da comissão de direito urbanístico da Ordem os Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), Ana Cecília Gomes, vê uma “grave omissão do Estado”, por considerar que são “mortes evitáveis”. “As chuvas, por si só, não precisam gerar danos, desde que exista um mapeamento das áreas de risco e soluções habitacionais”, defendeu.
Tal omissão é clara no “Córrego do Desastre” - o nome que melhor transcreve a situação de vulnerabilidade de onde morreram seis pessoas soterradas no ano passado.
Ali estão escancaradas, juntas, as mais diversas violações de direitos humanos. Dezenas de famílias pobres moram em um verdadeiro buraco, cercado por barreiras, que anunciam, todos os dias, que não vão resistir por muito tempo.
Sem saneamento básico, as casas precárias improvisam tubulações por si próprias, sem nenhuma assistência, encharcando o solo e antecipando o risco de deslizamentos.
Para se locomover de um lado ao outro, é preciso ter atenção com os animais, o risco de queda e o mato alto. Tateia-se o piso, para saber onde está firme, e não se pode confiar nas escadarias. Uma delas foi destruída pela precipitação no último ano e ainda não foi consertada.
Por isso, o aposentado João Santana, de 62 anos, improvisou uma nova - que já foi danificada com o temporal da última segunda-feira (6). Ele cavava um buraco no próprio quintal no dia da visita da reportagem do JC, para a água escorrer caso uma nova chuvarada caísse.
Enquanto isso, João, paciente de hemodiálise, suspirava, cansado, ao fazer o serviço que é dever do poder público executar. "Depois de tudo que aconteceu, que uma família morreu, apareceu a Defesa Civil para cortar as árvores e colocar lona plástica. Mas, depois disso, a Prefeitura não tem aparecido por aqui", disse.
A maioria das casas do Córrego foram condenadas. Várias estão abandonadas, mas outras foram reocupadas meses após o desastre por pessoas que não têm condições financeiras de arcar com a moradia em outro local.
É o caso da família de Simone da Silva, 29, que sobrevive de R$ 470 do Bolsa Família e da renda extra que o marido faz, quando consegue 'bicos'. À época, recebeu R$ 1,5 mil do auxílio das chuvas, que só custeou o aluguel de uma casa próxima, de R$ 350, por alguns meses: “ficava quase nada para a gente comer.”
A residência onde vive há dois anos, comprada por R$ 3 mil à época, está com rachaduras do teto ao chão, e tem um precipício na porta de entrada. “Tenho medo de ajeitar, e a chuva derrubar a casa”, comentou. Assim, um chuvisco é motivo para desespero - os dois filhos passam a noite em alerta.
“Quero me mudar daqui quando começar o inverno mesmo, porque Deus nos deu o livramento, mas ficamos com medo. Ainda não sei como vou fazer, vou juntando dinheiro até lá para conseguir sobreviver”, comentou.
Nove meses depois, o poder público sequer demoliu os destroços. A aposentada Lindalva Pereira, 75, disse já ter ido diversas vezes até a Prefeitura pedir que derrubem a cozinha e um dos quartos da sua casa, que foram destruídos e põem em risco a vizinha - mas não foi atendida. “Quando chegamos, somos atendidos com cara feia e dizem que estamos na lista”, contou.
Desesperada, arca com um aluguel de R$ 400, enquanto recebe uma pensão de um salário mínimo. "Estou morando em uma casa com aluguel de R$ 400 que só tem uma porta, não tem descarga no banheiro, nem caixa d'água. Estou passando necessidade".
Na última semana, quando as fortes chuvas começaram a cair sobre o Grande Recife, Polianna Nelma dos Santos, de 35 anos, recebeu uma ligação da amiga. "Vai começar tudo de novo. Venha com seu pai para a minha casa", relatou ela sobre a conversa.
Durante a precipitação no meio do verão, ela ficou de ‘plantão’ em frente à própria casa, que tem o morro como paisagem. “Um bloco de cimento começou a cair muito rápido lá de cima. Fiquei com medo de vir parar aqui. Não consegui dormir pela madrugada, só às 16h, quando a chuva passou mais”, contou.
Polianna é moradora da parte pertencente à Jaboatão de Jardim Monte Verde, comunidade limítrofe com a capital pernambucana e que teve mais registros de mortes por deslizamentos de barreira no inverno de 2022, que deixou 134 vítimas no Estado.
Em maio do último ano, quando viu o local onde vivia virar um cenário de guerra, sofreu o trauma de ver corpos sendo retirados da lama e perdeu tudo que tinha dentro de casa. No abrigo, conheceu o atual esposo, José Ronaldo Silva, 34 - um amor que cresceu sobre a raiz do desespero.
Juntos, com o auxílio de R$ 1,5 mil dado pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de Jaboatão, alugaram uma casa por R$ 350, mas, quando o dinheiro acabou, voltaram para o risco - pouco tempo após Ronaldo parar de ter pesadelos e acordar gritando durante a madrugada.
A previsão de que “tudo aconteceria de novo”, como temia a amiga dela, de fato se concretizou - dois pequenos deslizamentos foram registrados na última quinta-feira (9), segundo os moradores da área. Mas, felizmente, não atingiram nenhuma casa e nem ninguém.
Monte Verde é cercada por pontos de risco que, nove meses após a tragédia, nem mesmo possuem uma lona plástica para evitar a queda do barro. Próximo a uma das barreiras, foi feita uma praça de convivência para as crianças, que, segundo a gestão de Jaboatão, tem o intuito de evitar que o espaço seja reocupado por novas casas.
Na parcela administrada pelo Recife, a Rua Pico da Bandeira, onde 13 pessoas morreram, está parcialmente abandonada, com casas condenadas. O aposentado Elizeu Gonzaga Ramos, 59, está morando de favor com um amigo desde maio de 2022, quando deixou a casa avaliada em cerca de R$ 80 mil para trás.
Os rastros da destruição ainda estão por todo lado. Nem mesmo o barro foi tirado de dentro dos cômodos. No banheiro, ele chega quase a cobrir a privada. "Estão entrando na casa e roubando portas de alumínio e cabos de energia", contou.
A filha e a neta, que viviam na parte detrás, ficaram imprensadas pela barreira, e estão traumatizadas. "Quando chove, começa a chorar e minha filha não quer vir mais para Monte Verde". A vulnerabilidade é latente. Com um salário mínimo, Elizeu ajuda no aluguel da filha e pede pela efetivação do seu direito. "Eu queria moradia, porque, aqui, eu fugi da morte".
Prefeitura de Camaragibe
"A Prefeitura de Camaragibe, por meio da Defesa Civil, informa que equipes continuam no Córrego do Desastre realizando trabalhos de remoção de entulhos, como na Rua Antônio Camilo, recuperação de escadarias, como na Rua Getúlio Alves, e das casas dos arredores. Destacamos que as obras de contenção de encostas, drenagem e revestimento estão em processo licitatório, e serão executadas com recursos do Governo Federal. Quanto aos auxílios disponibilizados pela prefeitura, a distribuição aconteceu para os munícipes que estavam abrigados nos pontos de apoio do município. Além disso, cerca de 936 pessoas estavam aptas e receberam o Auxilio Pernambuco, fornecido pelo governo estadual na cidade."
Prefeitura de Olinda
"Seguem as ações da Prefeitura de Olinda que estão sendo realizadas neste momento: a Defesa Civil está 24h, de domingo a domingo, nas ruas para monitorar áreas de risco da cidade. São 3 equipes de colocação de lonas plásticas, 4 equipes de corte de árvores em situação de risco em barreiras e 4 engenheiros fazendo vistorias em imóveis mediante solicitação de moradores, além de uma equipe especializada em demolição atendendo os casos mais críticos.
O telefone para contato é o 0800.081.0060 ou o 99266.5307 (ligação e WhatsApp). Somente nesta semana, o município instalou 12.000m2 de lonas. Prefeitura já executa as ações de limpeza nas canaletas e galerias desde o mês de janeiro. Atualmente, uma ação de macrodrenagem em Olinda começou pelo Canal da Malária, no Varadouro. A Prefeitura também executa os serviços de microdrenagem nos seguintes locais: Avenida Ministro Marcos Freire – próximo ao Colégio Dom, Rua Regina Lacerda (Jardim Atlântico), Mata do Passarinho e Rua General Sampaio (Caixa D’Água).
Já está em andamento a construção do muro de arrimo na Travessa Jangada e Avenida da Saudade em Caixa d'água. Ressaltamos que para março está programado outras ações, dentre elas:Limpeza dos 27 canais que cortam o município; limpeza dos sistemas de microdrenagem; colocação de lonas plásticas nos pontos de maior risco nas encostas do município; serão construídos muros de arrimo nas localidades de maior risco. Ainda neste mês de março, Olinda aplicará geomanta em 94 pontos de áreas de risco do município. Ao todo, 56,7 mil metros quadrados serão protegidos com a tecnologia."
A Prefeitura do Recife e a de Jaboatão dos Guararapes foram contatadas pela reportagem do JC, que aguarda resposta para incluí-la na matéria.