A pandemia do coronavírus tornou visível como é fácil rastrear uma pessoa, bastando para isso que ela esteja carregando um aparelhinho muito presente na vida dos brasileiros: os telefones celulares. O rastreamento deles têm contribuído para o poder público (em várias instâncias, como prefeituras e governos estaduais) identificar os pontos onde estão ocorrendo aglomerações, que se tornaram um risco, porque contribuem para mais pessoas se contaminarem com a covid-19. Isso está ocorrendo das cidades do Recife ao Estado da Califórnia, nos Estados Unidos. E tem alimentado uma discussão sobre a invasão da privacidade dos cidadãos.
Nas redes sociais, muitos alegam que estamos vivendo num grande big brother, sendo possível identificar digitalmente todos os locais por onde passamos. "É absolutamente normal que se faça esse rastreamento nessa nova era em que tudo é digitalizável. No caso da tecnologia que está sendo usada aqui no Recife, as pessoas não são identificadas. É captado somente o movimento”, explica o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Cesar School José Carlos Cavalcanti.
O especialista argumenta que todos nós somos muito rastreáveis, porque cada vez mais deixamos mais dados disponíveis em ferramentas como WhatsApp, Google e Facebook. “Não há almoço de graça. O que me preocupa é o comércio gigante de dados. E não vejo ninguém reclamando disso”, alerta. Esses dados podem traçar o perfil dos hábitos das pessoas.
Voltemos ao rastreamento realizado por causa da pandemia. A solução está usando duas tecnologias. Uma é utilizada pelas empresas de telecomunicações, que rastreiam o movimento das pessoas à medida em que os seus celulares vão se deslocando e, consequentemente, mudando a antena na qual o aparelho é conectado. É assim que está sendo feito, por exemplo, no Estado de São Paulo. Aqui, a Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) fez uma parceria com a empresa pernambucana In Loco – que nasceu no Porto Digital – para identificar as aglomerações. Nesse caso, a rastreabilidade ocorre com a leitura de diversos sensores de GPS, wi-fi e bluetooth que entram em contato com os celulares quando ocorrem deslocamentos.
“A In Loco foi construída em cima de valores éticos. Não captamos nem o nome, CPF, nem qualquer informação civil do usuário. Quando passamos os dados para o poder público, damos uma nota, de forma agregada, que mostra o percentual do isolamento social”, resume o cientista de dados da In Loco, Luciano Melo.
Além do Recife, a empresa está oferecendo esse serviço, em forma de parceria sem cobrança, aos governos estaduais de Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Maranhão, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e as prefeituras de Teresina (PI) e Aracaju (SE).
Como se sabe, o isolamento social (com boa parte da população em casa) é apontado como uma das formas de conter a contaminação do coronavírus pela Organização Mundial de Saúde (OMS). “Por conta dessa ferramenta, é possível planejar e tomar medidas de forma preventiva. Por exemplo, enviamos o carro do som explicando a necessidade do isolamento social para as comunidades nas quais percebemos que estão ocorrendo maior pontos de circulação”, conta o secretário-executivo de Inovação da Prefeitura do Recife, Túlio Ponzi.
O executivo diz que, utilizando essa tecnologia, o município já se comunicou com cerca de 500 mil moradores da cidade, gerando aproximadamente 7 milhões de visualizações das mensagens. Pela última estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística (IBGE), de 2019, o Recife tem 1,6 milhão de residentes.
O governo federal, via Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC), suspendeu o contrato que tinha com um consórcio de empresas de telecomunicações que estava oferecendo, gratuitamente, essas informações para cidades com mais de 500 mil habitantes e para Estados. “Não posso falar pelo governo (federal). Nosso trabalho continua, está nas nuvens durante a pandemia e será disponibilizado aos entes que aceitem os termos do acordo de cooperação técnica”, afirma o presidente executivo do SindiTelebrasil, Marcos Ferrari. Nesse acordo, são estabelecidos parâmetros de governança, acesso, responsabilidade com os dados e os procedimentos a serem realizados.
Na semana passada, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) foi demitido por, entre outras coisas, defender o isolamento social, enquanto o presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), defende o afrouxamento da medida. A reportagem do JC procurou a assessoria de imprensa do MCTIC para falar da suspensão do fornecimento de dados à União sobre o isolamento social. Um dos assessores informou, por telefone, que o ministério não está se pronunciando sobre o assunto. No meio corporativo, há uma interpretação de que as informações não interessam ao governo federal porque a União pretende afrouxar essa medida.