''Se não tiver impeachment é melhor'', diz Fernando Henrique Cardoso sobre crise no governo Bolsonaro

De acordo com o ex-presidente, o país precisa de mais "tolerância" e o impedimento de um chefe de Executivo só deveria ser defendido em último caso
JC
Publicado em 26/06/2020 às 19:36
FHC presidiu o Brasil de 1995 a 2003 Foto: Foto: Agência Brasil


Em entrevista à Rádio Jornal na tarde desta sexta-feira (26), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) falou sobre suas impressões sobre o momento político e econômico pelo qual o Brasil está passando, sobre sua relação com o ex-presidente Lula (PT) - com quem diz ter uma relação pessoal -, afirmou não incentivar um impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e fez projeções a respeito do futuro dos brasileiros. O tucano de 89 anos que presidiu o Brasil por duas vezes voltou a afirmar que seu tempo político já passou e disse aguardar o nascimento de nova liderança capaz de liderar as forças progressistas do País no pleito de 2022.

FALTA DE LIDERANÇAS

Falta muita liderança, não só no governo daqui, mas em muitos lugares do mundo e também na sociedade. Nós estamos mudando a era, nós vivíamos em uma era pré isso que nós estamos fazendo agora, você está em Pernambuco, eu estou em São Paulo e nós estamos conversando com naturalidade. Isso leva mais poder para as pessoas e elas se conectam com quem elas querem. E nós estamos acostumados com outros tipos de organização, mais estável, como sindicatos, partidos, governos, família. Agora não é só isso, além disso você cria a sua própria tribo, você se conecta. esse é o mundo que está começando. É um mundo difícil e você liderar nesse mundo não é simples. Eu tenho pena de quem está nos governos hoje, mas não só nos governos. Quem tem que exercer liderança somos todos e estamos em dificuldade. Com essa questão de internet, por exemplo, eu fico tateando, eu escrevo de vez em quando no Twitter e descobri que não dá pra desenvolver grandes pensamentos lá porque não dá tempo pra isso e as pessoas não querem. É uma explosão. E a nossa sociedade vive de explosão em explosão, de repente explode e você não sabe o motivo. Recentemente foi na França, no Chile há poucos meses. Isso é uma situação nova, que requer outros tipos de líderes, mas tem gente que custa a passar o bastão. Tem um dito e continuo dizendo: a minha geração já era. Há muito tempo que já era, mas pensa que está aqui ainda. Nós estamos com um pé aqui e outro no céu.

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ERROS DEMOCRATAS

Qual foi a agenda do Bolsonaro na campanha? Foi uma agenda negativa. Não ao PT, não à revolução que eles inventaram que iria acontecer no Brasil, não ao desregramento. Eu acho que nós somos responsáveis por termos levado ilusões longe demais ao nosso povo de que na base de soltar um pouco tudo, sobretudo no segundo governo da Dilma, não quero responsabilizá-la, ela não é culpada, mas também o governo Temer, que tentou emendar tudo isso. Faltou caminho, faltou dar um sentimento de que pertencemos ao nosso coletivo. Aí nós somos todos responsáveis, porque cada um queria puxar para o seu lado e aí nós estamos em um momento e que a gente precisa agregar, ter coesão e não desagregar e nós ajudamos um pouco a desagregar. Ele e nós. Quem inventou o eles e nós não foi o governo atual. Já veio de antes. E essa divisão, tem os bons e os maus, já bem marcado desde que nasceu não faz bem à formação de um país. Essa é a raiz das nossas discórdias cotidianas.

ARREPENDIMENTOS DO SEGUNDO MANDATO

A inflação começou a ser controlada no governo Itamar (Franco), eu era ministro da Fazenda, mas consolidamos no meu governo e foi importante para a gente dar bem-estar ao povo. A inflação tira do pobre e dá para o rico, quando para esse processo você dá de volta alguma coisa para o pobre. Mas as grandes modificações levam tempo, não dá pra fazer em quatro anos. Como você vai fazer reforma agrária em quatro anos? Objetivamente, no meu primeiro mandato eu abri caminhos, no segundo consolidei. Quando você vai consolidando, as pessoas se cansam dos que estão mandando. Mas nós fizemos muito pela educação no segundo mandato. Tive um só ministro da Educação, Paulo Renato de Souza. Tive um só ministro da Economia, Pedro Malan. Demos continuidade. Você não faz nada em pouco tempo. A colheita demora. E, na verdade continua colhendo. O Lula colheu no primeiro mandato dele, muito do que eu fiz. As bolsas que nós criamos se chamavam Bolsa Escola, o Lula mudou o nome, colocou Bolsa Família e juntou várias bolsas que nós tínhamos. Já estávamos começando a preparar tecnicamente a evolução delas e o Lula colheu os louros disso. Não tem importância, para o Brasil foi bem, para o país foi bom. Eu não tenho arrependimentos. Eu acho que em um mandato só faz-se pouca coisa, é preciso mais tempo para maturar.

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DESGASTE CONSTITUCIONAL

Pouco a pouco, os atores foram transformando a democracia representativa numa fragmentação brutal dos interesses das pessoas políticas. As pessoas criam partidos que têm acesso ao fundo partidário e hoje nós temos não sei quantos partidos. São siglas, não são partidos. Essa não foi a intenção da Constituinte. Nós não tínhamos em mente essa fragmentação que houve. Essa fragmentação foi acontecendo por interesse dos políticos de criar partidos para ter vantagens com esses partidos, inclusive político-eleitorais. Houve uma espécie de deterioração do sistema inicial. Isso não quer dizer que o sistema inicial tenha sido perfeito, quer dizer que o uso dele é que foi desgastando mais depressa ainda. Que há desgaste eu não tenho dúvida. A população olha hoje para os políticos com uma certa desconfiança e atribui a todos a mesma qualidade: estão aí só para roubar. E não é verdade, tem muitos políticos que não estão aí para roubar. Eu queria dizer também que as garantias que foram dadas pela Constituição continuam aí. Liberdade de imprensa, liberdade de opinião, habeas corpus, regras. Democracia é um governo que exige regras. Nós aqui no Brasil somos um povo que parece pretender não ter regras, mas sem regras quem sofre é o povo, e quem manda é quem tem mais votos. O que foi feito foi tentar criar um sistema democrático.

NASCIMENTO DA POLARIZAÇÃO

Eu não sei se os atores tinham consciência do que estavam fazendo. Por exemplo, por que nunca houve a possibilidade de o PT aceitar que tinha perdido a eleição? Perderam no primeiro turno duas vezes. e eu sempre aberto, querendo conversar, mas era sempre “Fora, FHC”. Era sempre esse sentimento de “nós contra eles”, que houve em outros momentos, no tempo de Getúlio (Vargas) houve isso também. Mas foi renascido no tempo do PT. Hoje isso mudou de mãos, o pessoal que apoia o Bolsonaro que grita fora todo mundo. Nós fomos perdendo o sentido do jogo democrático, que é quando você tem mandato com tempo determinado, o eleitor é chamado a votar e você tem que respeitar a regra do jogo. Nós aqui nos acostumamos a tirar do poder. Impeachment. Como agora. Eu não sei nem se há razão, se cria razão. Eu acho que tem que ter um pouco mais de paciência histórica. Esperar para ver se a coisa amadurece. Se o presidente errar muito, não tem o que fazer. Veja o presidente (Fernando) Collor. Você acha que no começo Ulysses Guimarães ou eu queríamos tirar o Collor? Ele fez tantas coisas que não teve mais jeito, se tirou. No caso do Lula, eu me opus a tirar o Lula de lá. Ele era o primeiro líder operário a chegar ao poder e você vai tirar? Isso é uma violência histórica. A presidente Dilma eu fui muito reticente também, mas chegou a um ponto que não tinha mais jeito. E quando isso acontece? Quando ele para de governar, quando a rua começa a gritar e quando o governo incorre em alguma coisa contra a Constituição e a lei. Tem que ter esses fatores juntos para se dizer que não dá mais. E nós criamos uma democracia que é relativamente jovem e já tirou dois presidentes, é muita coisa. Eu acho que precisamos ter um pouco de tolerância. Democracia implica em capacidade de esperar um pouco até chegar a eleição e aí juntar forças para você propor alguma coisa nova.

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PEDIDO DE RENÚNCIA DE BOLSONARO

Eu não acreditava nisso nem quando escrevi. Não é da alma dele renunciar a nada. Ele não vai renunciar. Em tese, eu acho que se não tiver impeachment é melhor. Agora impeachment não é porque eu queira ou deixe de querer. eu acho que nenhum líder tem que ter como objetivo um impeachment. Isso é um objetivo contra a vontade popular. Agora o presidente é que é responsável quando há um impeachment. Cria-se condições de tanta instabilidade que ele perde a capacidade de governar. Eu acho que não deve-se fazer pregação pelo impeachment. Eu mesmo tenho um comício mais tarde em que alguns vão querer impeachment, outros não, está se criando uma onda e eu não sei até onde ela vai. Eu, de minha parte, não acho que eu deva proclamar que quero derrubar alguém. eu quero que o presidente dê certo. Se não der, paciência, é como fruta, tem um momento que cai do galho.

HAMILTON MOURÃO

Se houver um impeachment, ele sucede naturalmente o presidente Bolsonaro. Por acaso eu nunca vi o Bolsonaro na minha vida. Ele foi deputado federal, eu era ministro, senador, nunca o vi. Agora eu conheci o general Mourão, um homem razoável. Agora eu não estou propondo que o Mourão assuma. Eu não votei nessa chapa. Pela primeira vez na vida eu anulei meu voto. Eu não queria dar meu voto, não pelo Fernando Haddad, com quem eu tenho boas relações, mas eu não queria dar o meu voto ao PT, porque o partido tinha sido bastante desastrado na condução política do Brasil e não concordava com a possibilidade de Bolsonaro também, por sua agenda negativa. Eu não votei nessa chapa, agora acho que se houver impeachment o Mourão assume. É melhor que ele assuma com algum resquício de legalidade do que botar alguém que o povo não conhece.

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RELAÇÃO COM LULA

Eu sou uma pessoa institucional, respeito que é presidente. No caso do Lula, eu conheço o Lula há muitos anos, quando ele era líder de sindicato em São Bernardo. Conheci a casa dele de operário, com a Marisa e os filhos. Passaram férias na minha casa de praia, ele com os filhos e a Marisa. Não gostaram, porque era uma casa muito simples. Eu sempre tive uma relação pessoal com ele. Quando ele ficou doente eu o visitei, morreu a Marisa e eu fui ao enterro. Isso é uma coisa pessoal. E ele fez a mesma coisa, foi ao enterro da Ruth quando ela morreu. Agora eu não tenho relação pessoal rompida com o Lula. Politicamente eu não concordo. Agora, por exemplo, as pessoas estão falando em coesão e o Lula está querendo caminhar sozinho. Eu acho errado politicamente. Também não estou de acordo com muita coisa que ele fez, como também não estou de acordo com muta coisa que muita gente fez e há coisas que eu mesmo fiz e não faria de novo. Mas isso não é razão para eu romper com ele como pessoa, nunca briguei com ele como pessoa. Não acho que quando saiu da cadeia ele tenha tido o comportamento de um líder nacional. Um líder nacional tem que olhar para o Brasil e dizer: vamos ver o que a gente pode fazer para melhorar esse país. ele pensa que vai, de novo, abrir caminho para voltar ao poder sozinho.

CANDIDATO EM 2022

É muito cedo para se imaginar que da união de partidos pela democracia saia alguma coisa efetiva em termos de condução do processo político. A candidatura presidencial vai se colocar depois da eleição municipal. Depois de eleitos os prefeitos é que teremos os candidatos a presidente da República. Quem vai ser a pessoa que eu vou apoiar? Não precisa ser do meu partido, mas precisa ser uma pessoa que tenha lado, e ter lado no Brasil significa o seguinte: a desigualdade chegou a um ponto insustentável. Você não pode ter uma política que seja só voltada para quem já tem. Tem que ser uma política que olhe também para os não têm. Não basta ser democrata, precisa ter comprometimento com a visão de uma sociedade que seja mais igualitária. quem vai ser capaz de simbolizar esse momento eu não sei, é cedo para isso. Não sei se vai sair dessa frente que se formou de maneira mais imediata para defender manutenção das regras do jogo, não sei nem se vai aparecer, mas se aparecer tem que ser uma pessoa que conheça a realidade brasileira. Você não pode governar o Brasil desconhecendo a diversidade do nosso país, a desigualdade do nosso país, as várias regiões do nosso país. (...) E também acho que essa pessoa tem que ser de outra geração. Quando eu digo que nós já éramos, é porque eu acho que tem que haver espaço para as novas gerações. Não tem sentido uma pessoa que está se aproximando dos 90 anos, como eu, ou dos 70 e tantos, como Lula, pretender que ainda vai ser líder de um país de jovens. Não dá. Tem gente que já nasceu com esse negócio dentro da alma, com a internet na alma e não só nos livros.

LUCIANO HUCK

O Luciano Huck, se quiser ser candidato, tem que falar ao país para o povo sentir que ele está sintonizado com o que ele sente e quer. Eu tenho espírito aberto. No meu partido, o PSDB, tem gente boa também. O governador de São Paulo tem feito um bom governo, o do Rio Grande do Sul também. Não sei se eles vão ter forças para agregar e, naquele momento, daqui a dois anos, ter a voz e o sentimento que vão coincidir com a cabeça do povo. A cabeça é importante, mas o coração conta muito também. Eu não estou antecipando que vai ser esse ou aquele, eu estou dizendo que se eu estiver vivo estarei disposto a apoiar quem tiver essas condições. Não estou fechando a questão.

GERALDO ALCKMIN

Geraldo é bem mais moço do que eu, mas ele não está muito ativo aqui em São Paulo. É o estilo dele, pode ser que apareça. Eu não sei se o Geraldo vai ter disposição, mas é uma pessoa correta, uma boa pessoa, talvez falte um pouco de chama. Vamos ver como ele vai reagir. Outros têm chama, mas não basta ter chama, tem que ter um pouco de experiência. Mas também cansa. Você não pode achar que as gerações não pesam, os anos passam e pesam na gente. Aumentam a sua sabedoria, mas também te deixam com mais dúvidas, pois você já conhece muitos caminhos e começa a duvidar. E para chegar lá você tem que acreditar, tem que ter vontade e esperança. E isso se transmite. E os mais jovens transmitem isso com mais energia. Isso não quer dizer que eu não possa votar em uma pessoa de certa idade. Posso. Depende do que ele faça e se está sintonizado com o mundo, com o Brasil, com o povo. Ele é contemporâneo a nós mesmos, pertence a esse mundo que está sendo criado? Ele não é bom nem mau, só diferente.

FUTURO DO CENTRO

Nós estamos vivendo um momento de polarização, o grito ganha do todo o mais. Quem é de centro-direita ou de centro-esquerda acaba perdendo espaço. Mas também há um certo cansaço do grito, pois ele precisa ser eficaz, ele precisa dar bem-estar ao povo. E como você vai dar bem-estar ao povo com uma crise de saúde e econômica gravíssimas? Se o centro for capaz de dar um rumo, e esse centro não pode ser amorfo, tem que ter lado, e esse lado tem que ser da população que precisa de apoio. Tem que ter investimento, credibilidade, tem que despertar a confiança também nos que têm que investir, senão esse país vai para o buraco. Esse é o momento em que nós temos que juntar os descontentes e dar caminho. Isso precisa de líder, vamos ver quem vai poder criar esse caminho e ao mesmo tempo manter viva a esperança, pois pobre também precisa de esperança.

ESPERANÇA

Eu tenho esperança. Eu já vi esse país em situações tão difíceis, em tantos momentos. No tempo da inflação era tão difícil, então eu tenho esperança. Nos próximos dois ou três anos nós vamos ter que pagar dívidas, manter a atenção no orçamento, vai ser um governo de cinto apertado. O governo não poderá fazer grandes obras, não tem como. Mas hoje há dinheiro sobrando no mundo. Ontem houve uma votação muito importante no Senado, que trata de infraestrutura, esgoto, água, é muito importante isso para as pessoas. a gente vai ter que fazer esforço. O governo vai ter que concentrar os recursos que têm em áreas decisivas para o Brasil e isso vai requerer uma economia social de mercado. Esse que é o desafio.

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