A judicialização da política, questionada a partir da intervenção do Poder Judiciário em decisões que caberiam ao Poder Legislativo, apesar de não se tratar de um tema novo, surge em voga aos excessos de postura nas duas esferas. Se, por um lado, políticos criticam as interferências do Supremo Tribunal Federal (STF), por outro, as agremiações partidárias são as que mais recorrem às Ações Direta de Inconstitucionalidade, conhecidas Adins, contra atos do governo e proposições do próprio legislativo.
“Essa judicialização não cresceu tanto sem ter a colaboração do próprio Congresso Nacional. Foi confortável deixar que assuntos mais impopulares e com maiores custos políticos, fossem decididos pelo Poder Judiciário. Para esses atores, a discussão não se trata de ser boa ou ruim, toda essa estrutura tem sido útil para todos os envolvidos”, avalia o doutor em Ciência Política e professor do Programa De Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), José Mário Wanderley Gomes Neto.
Com a garantia de possuir legitimidade para concentrar ações de controle no STF, os partidos de oposição geralmente são os que mais se utilizam desse instrumento para barrar a agenda governista. Assim como nos governos do PSDB, era o PT um dos principais autores das ações, na gestões petistas eram o PSDB e DEM que apresentavam as ações diretas de inconstitucionalidade. O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não foge à regra. Um levantamento feito pelo jornal O Globo, divulgado no ano passado, mostrou que em 2019, os partidos políticos foram responsáveis por 27% das ações questionando leis e normas que chegaram ao Supremo. Percentual maior que o da Procuradoria Geral da República (PGR). Enquanto as siglas tinham ingressado com 91 ações, a PGR registrava 50.
Apesar da expressividade em relação aos números impetrados, o professor José Mário Wanderley afirma que a maioria das ações são rejeitadas ou julgadas como improcedentes. O docente, inclusive, cita que muitos partidos entram com a ação sabendo que irão perder, mas utilizam dessa ferramenta como objetivo simbólico, de fazer a sua “marcação política” a respeito de determinado tema.
O deputado federal Augusto Coutinho (Solidariedade) apresentou o Projeto de Lei nº 566/2021, para modificar os critérios que legitimam a proposição de ações de controle de constitucionalidade concentrado por parte dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional. As ações alvo, do projeto de Coutinho, são a ação direta de inconstitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e a arguição de descumprimento de preceito fundamental. O texto também define que cada partido poderia entrar com até duas representações por ano.
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“Ocorre que não existe um controle para enviar essas ações de questionamento de constitucionalidade. Se há uma votação em que não se concorda com o resultado, os partidos entram com ação de constitucionalidade, se concorda com a ação do governo, também. Então acaba que muitos acionam a Suprema Corte para resolver dúvidas e questionamentos com assuntos que são políticos”, argumenta o deputado federal pernambucano.
Ele também faz uma crítica sobre a máxima de que o STF estaria ocupando o lugar do legislativo, mas que isso tem sido provocado pelos próprios parlamentares. "Ele está extrapolando, mas a culpa é nossa. Isso precisa ser ordenado e serve para qualquer governo, para que as ações não sejam banalizadas junto ao Supremo”, defendeu.
Nos últimos anos, a intervenção do Judiciário em atos típicos do Legislativo e do Executivo se tornaram frequentes. Segundo informações repassadas pela equipe de Augusto Coutinho, desde 2000, foram registradas 1.620 ações de controle concentrado de constitucionalidade distribuídas por partidos políticos no STF. Isso dá em média 81 ações por ano.
No início do governo Bolsonaro , o PSL, o Podemos e o Cidadania acionaram o STF para impedir a criação do juiz de garantias, figura nascida no pacote anticrime que o presidente encaminhou ao Congresso e acabou aprovado pelos parlamentares. Em janeiro de 2020, porém, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, manteve a validade da norma.
Apesar disso, o magistrado suspendeu o dispositivo "que determina aos tribunais que adotem sistema de rodízio de magistrados para efetivar a criação do juízo das garantias nas comarcas que tenham apenas um juiz", por entender que isso violaria o poder de auto-organização dos tribunais, e o "dispositivo pelo qual o juiz que conheça de prova declarada inadmissível fica impedido de proferir decidir", de acordo com o Supremo.
Com a falta de harmonia dos entes federados (União, estados e municípios) no enfrentamento da pandemia da covid-19, as ADIs, têm tido um retorno mais efetivo. No último mês de dezembro, por exemplo, acatando Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Rede Sustentabilidade, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu estender a vigência da lei 13.979/2020, "que estabelece medidas sanitárias para combater a pandemia da covid-19". Entre as medidas asseguradas da lei, consta o isolamento social para evitar a propagação da doença, e a quarentena, com restrição de atividades.
Para o advogado e professor de direito, Deco Costa, propostas que limitem o número das ações, não se concentram no verdadeiro problema da questão. "Esse tipo de projeto de lei vem mais para tapar o sol com a peneira. O problema é entender a finalidade daquela representação. Temas como a união homoafetiva, uso de células-tronco, ganharam campo de resolução no Judiciário, porque no Legislativo, até pela composição conservadores, eles acham muito mais cômodo que essas matérias ganhem o ambiente judicial para não se comprometerem com suas bases”, afirmou.
No entanto, o quantitativo de ações propostas pelos partidos não é considerado prejudicial, segundo alguns especialistas. “Antes da Constituição de 1988, só quem podia entrar com uma Ação no Controle Concentrado no Supremo era o procurador geral da República, ou seja, era apenas um legitimado. Depois da Constituição, houve uma abertura do tamanho da porta da Suprema Corte brasileira, para que pudessem bater na porta, passar por essa porta de acesso diversos atores, como os próprios partidos políticos, desde que tenham uma característica nacional e representatividade no âmbito do Parlamento federal”, explicou o especialista em Direito Constitucional e professor da Unicap, Marcelo Labanca.
“Quando chega no Supremo isso vira uma discussão jurídica, e não um debate sobre se a lei deve ser aprovada, mas se a lei é ou não violadora da Constituição. Nenhuma lei pode violar a Constituição, pois ela é a lei das leis, ela está acima de qualquer outra lei”, afirmou Labanca.
O advogado e especialista em direito constitucional, Antônio Ribeiro Júnior também endossa que o número de controle de constitucionalidade não seja prejudicial, porque elas contribuem para o processo democrático e a consolidação da norma constitucional. “Foi por meio dessas ações que grandes temas do direito, grandes temas da nossa sociedade contemporânea foram solucionados. Inclusive, por exemplo, a questão da competência dos Estados para tratar sobre vacina, atividade sanitária, não foi a ação do partido, foi da OAB, mas apenas para trazer como mote que há momentos em que esse instrumento legal é usado como forma de se fazer política, como forma de se confrontar o governo, digamos assim”, declarou Ribeiro Júnior.