A lei que classifica templos religiosos e igrejas como serviços essenciais durante períodos de calamidade pública, como a pandemia de covid-19, em Pernambuco contraria autoridades de saúde do Estado e encontra divergência até mesmo dentro das igrejas, mas mostra a força política que os grupos religiosos têm, na avaliação de especialistas.
“Essa também foi uma forma de o Executivo estadual evitar o desgaste com esse público, ainda que a estratégia deixe arestas a aparar com os demais segmentos”, afirma Priscila Lapa, cientista política e professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho). Segundo projeções do IBGE, o tamanho dos religiosos é grande. Considerando apenas católicos e evangélicos, o grupo representa cerca de 81% da população pernambucana.
O texto foi aprovado pela Assembleia Legislativa por 46 votos favoráveis e dois contrários, após idas e vindas das comissões e articulação da bancada cristã, que representa aproximadamente 30% do parlamento estadual. Nessa segunda-feira (10), a lei foi sancionada pelo governador Paulo Câmara (PSB). Nacionalmente, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já havia incluído as atividades religiosas no rol dos serviços essenciais desde março de 2020.
Apesar da classificação como essencial, a lei estadual garante que, caso seja necessário, novas restrições podem ser impostas pelas autoridades sanitárias. Esse ponto específico, porém, gerou uma cisão entre os parlamentares cristãos da Alepe. De um lado, o autor do projeto que originou a lei, Pastor Cleiton Collins (PP), defende a medida. “Agora com a sanção, nenhuma igreja será fechada. Pode ter culto online ou presencial, mas não pode fechar suas portas. Todas as atividades devem continuar funcionando”, diz.
Do outro lado estão os deputados Clarissa Tércio (PSC) e Joel da Harpa (PP). Segundo a social-cristã, a possibilidade de as autoridades restringirem as atividades religiosas excepcionalmente inviabiliza a matéria e tudo continua exatamente como está. “Após fechar as igrejas durante toda a pandemia e ignorar o clamor dos cristãos pernambucanos por seu direito de culto, o governador agora quer fazer espetáculo com esse ato de sanção desse projeto que não garante verdadeiramente o nosso direito”, diz ela.
Opinião parecida tem Joel da Harpa. “Na aprovação do projeto na Alepe, eu defendi o texto original sem esse parágrafo, que fala do governo fechar as igrejas quando achar conveniente, porque entendo que mesmo em pandemia as igrejas devem permanecer aberta com os cuidados sanitários” afirma o deputado.
Apesar da possibilidade legal de novas restrições, a médica sanitarista Bernadete Perez, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), diz que o mais adequado para o momento que vivemos seria que as instituições religiosas optassem por reuniões a distância. Além disso, a especialista defende que a decisão das autoridades estaduais deveria ser baseada na ciência ao invés de na política.
“Essa lei é um grande equívoco, além de ser imprudente. Todas as evidências científicas, que acumulamos nesse tempo inteiro em relação à covid-19, mostra que ambientes fechados, com aglomeração e com pessoas falando, como nos templos, são lugares de altíssimo risco de transmissão viral”, explica a médica.
“Essa medida é pautada por outros interesses e não a defesa da vida. O enfrentamento da epidemia precisa levar em consideração dimensões diversas a partir da evidência científica, cuidando das pessoas para além de qualquer outro valor ou racionalidade”, completa a especialista, alertando que isso pode incentivar mais pessoas a irem aos templos mesmo num grave contexto epidemiológico.
Nesta terça-feira (11), Pernambuco superou, pelo terceiro dia seguido, recorde na média móvel de casos de covid-19. Com a confirmação de mais 2.779 testes positivos, o indicativo - média das confirmações dos últimos sete dias - chegou a 2.343: o maior desde o início da pandemia. Comparado com o de 14 dias atrás, o número teve uma alta de 20%.
Um dos únicos deputados a votar contra a medida, João Paulo (PCdoB) compartilha da mesma avaliação de Bernardete. “É muito difícil as autoridades controlarem todas as igrejas nessa pandemia. Eu vejo com preocupação essa decisão e espero que o governo possa aderir à ciência e fechar os templos quando for preciso para controlar os números”, diz o comunista. “No mais, acredito que a decisão de sancionar foi um ato de deferência do governador à Alepe”, completa.
De acordo com interlocutores do Palácio do Campos das Princesas, apesar de desagradar autoridades da área de saúde, Paulo Câmara não vetou o projeto por acreditar que a grande maioria das igrejas respeitará os protocolos sanitários, independentemente de um decreto.
"Já havia uma polêmica em relação ao assunto e uma discussão sobre a importância de se buscar orientação religiosa em um momento como esse. Não era interessante alimentar isso ainda mais. O governo viu que não haveria a necessidade de uma obrigatoriedade de fechamento, e por isso optou por seguir esse caminho, dando um voto de confiança às lideranças religiosas", comenta um interlocutor palaciano.
O JC procurou o governo do Estado para entender quais os critérios foram levados em consideração para sanção da lei. Por meio de nota, a gestão respondeu que “a redação da lei contemplou tanto a necessidade de oferecer conforto espiritual à população, quanto o cumprimento de medidas sanitárias para momentos de pandemia e a utilização de medidas mais rígidas, sempre que necessárias.”
A cientista política Priscila Lapa explica que os grupos religiosos exercem uma influência muito significativa na sociedade e, por isso, dialogar com eles é importante para qualquer governo. "As igrejas são instituições de muita influência e que vêm crescendo de uma forma exponencial na política, ocupando espaços cada vez maiores. Esse fator entra na conta do governo na hora de tomar uma decisão que afeta grupos religiosos"
Lapa ressalta a força de mobilização popular das igrejas e pontua que há uma pressão tanto social quanto política em decisões do governo que envolvem o funcionamento de uma instituição religiosa. "Se um governo restringe uma atividade como essa, que afeta a espiritualidade das pessoas, e cria um desgaste com lideranças, ele compra briga com um grupo que tem uma força política muito grande e isso pode até atrapalhar eleitoralmente", avalia.
A mesma análise é feita pelo cientista político Elton Gomes, professor da Faculdade Damas. "A gente tem uma representação muito forte da religião no âmbito político no Brasil. Me parece ser uma decisão estratégica [incluir igrejas como atividades essenciais] para não comprar briga com esse público, não só com as igrejas, mas com aqueles que frequentam esses locais”, opina.
Mesmo com a liberação por parte do governo estadual, alguns templos religiosos continuarão realizando virtualmente suas celebrações. É o caso da Igreja Mangue, localizada no bairro de Santo Antônio, área central do Recife. Segundo o pastor Maelyson Rolim, responsável pela congregação.
"Eu entendo que o essencial é o cuidado com a vida e, por mais que as medidas de distanciamento sejam tomadas na igreja, há circulação de pessoas que podem carregar o vírus. Claro que sentimos falta de estar juntos na igreja, nos relacionando com os irmãos, mas na minha opinião, manter as atividades virtuais neste momento seria o caminho certo, mas sei que impor isso geraria muita insatisfação por parte de algumas lideranças religiosas", declarou o pastor, explicando que sua igreja tem um grupo de acompanhamento dos números da pandemia para basear as decisões sobre os cultos presenciais e remotos.
No mesmo sentido, a direção da Federação Espírita Pernambucana (FEP) ressaltou, por meio de nota, que "entende, dentro da fé de cada um, a importância dos encontros presenciais". No entanto, informou que, por causa dos números da pandemia da covid-19, manterá suspensas, até o dia 31 de maio, as atividades presenciais, prestando assistência de forma virtual.
"A presidente da FEP, Cristina Pires, destaca que a Casa tem realizado atividades de maneira virtual, como palestras e atendimento fraterno, como forma de levar consolo, esclarecimento e orientações aos que precisam, especialmente neste período de isolamento social imposto pela pandemia. De maneira presencial, ainda de acordo com ela, está sendo realizado apenas a assistência e promoção social às famílias cadastradas, seguindo todos os protocolos estabelecidos pelos órgãos de saúde", finaliza a nota.
Por outro lado, o presidente da Convenção Batista de Pernambuco, pastor Alberto Farias, afirmou que a sanção do projeto de lei é de extrema importância, pois a igreja tem o papel de acolhimento. "Esse projeto traz o reconhecimento de que o trabalho das igrejas é essencial, principalmente no meio da pandemia porque as pessoas estão aflitas e procurando ouvir alguma coisa da parte de Deus", afirmou. O pastor explicou que, mensalmente, a convenção consegue ajudar aproximadamente 200 famílias com cestas básicas e refeições.
O arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido, também defende a classificação de templos religiosos como essenciais. "A fé independe de espaços físicos, não vai fazer muita diferença. Mas as pessoas se encontram, o que é mais fácil você continuar com as atividades pastorais, as atividades missionárias. Sempre respeitando os protocolos", disse.
Para Liniker Xavier, mestre e doutorando em ciências da religião, ao se delegar essa responsabilidade a quem está à frente das igrejas e templos, o governo evita um confronto não só com as lideranças religiosas, mas com uma parte da população que busca a religião como forma de amparo em um momento de calamidade.
"Em um país como o Brasil, que tem uma lastro religioso muito forte, fechar um templo religioso representaria, no imaginário coletivo, uma proibição da expressão de fé", argumenta Xavier. “Com os discursos alinhavados e chancelados por lideranças religiosas que possuem o poder, inclusive, de emissoras de rádio e TV, criou-se uma espécie de folclore no imaginário coletivo de que existe uma perseguição à liberdade de culto no Brasil.
"Certamente se a restrição das celebrações religiosas presenciais recebesse o apoio de lideranças como padres e pastores, a aceitação entre os fiéis seria necessariamente muito maior. Há uma relação de autoridade entre o fiel e a sua liderança eclesiástica, seja ele padre ou pastor, estimulada pela própria teologia dessas vertente", conclui ele.