Estudo compara consumo de conteúdos na internet com comportamento zumbi

Os pesquisadores apontam que o modo "zumbificado" de consumir notícias contribui para o caos de informações na internet e a desinformação
Débora Oliveira
Publicado em 16/10/2020 às 10:55
O comportamento "zumbificado" de consumir informação tem a ver justamente com o papel passivo de receber conteúdos e repassar adiante, detalha a pesquisa. Foto: Reprodução/Steve Cutts


confere.ai - Matéria produzida pelo projeto Confere.ai em parceria com o Jornal do Commercio.
Em 2020, os bytes gerados no mundo digital superariam em 40 vezes a quantidade de estrelas no cosmo observável, segundo relatórios anuais da empresa de Business Cloud DOMO. Um estudo conduzido pelos pesquisadores em ciência da informação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Leonardo Ripoll e José Matos mostrou como a adaptação humana a esse ambiente de tantos conteúdos produzidos por segundo favoreceu o caos informacional. Para os pesquisadores, o público tem cada vez mais consumido conteúdos como zumbis, por meio do hábito análogo à visão moderna do zumbi, proposta nos filmes do diretor estadunidense George A. Romero (1940-2017).

“O comportamento ‘zumbificado’ tem a ver justamente com o papel passivo de receber conteúdos e repassar adiante, contribuindo para uma epidemia de desinformação na sociedade. Não é à toa que usamos tanto a palavra ‘viralização’”, descreve Leonardo.

Se por um lado a era pós-moderna potencializou a desconfiança, o refinamento crítico e a vigilância, a enorme oferta de informação gera um efeito contrário: para lidar com a sobrecarga cognitiva, as pessoas simplesmente decaem para um estado de indiferença ou apatia, caracterizando a zumbificação.

Sintomas de zumbificação

À época da pesquisa, em 2017, os pesquisadores já comparavam o caos informacional a uma epidemia da informação, termo popularizado em 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “um dilúvio de informações - precisas ou não - que dificultam o acesso a fontes e orientações confiáveis”.

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Segundo o estudo, o compartilhamento de desinformação é motivado, também, pelo egocentrismo, ou seja, ao estar diante de uma informação, a decisão por compartilhá-la leva em consideração como os amigos ou contatos vão reagir. Um estudo de caso atrelado ao artigo concluiu que algumas informações compartilhadas pelas pessoas nem mesmo eram lidas antes de passar adiante.

Os resultados foram comparados a uma pesquisa realizada com estudantes em Singapura. Esta última concluiu que muitos boatos são compartilhados por que as pessoas consideram a interação na rede mais importante que o ato de informar em si. Leonardo define esses fatores como “sintomas de zumbificação”. Assim, preocupa-se menos com a mensagem passada do que com o ato de repassar.

Por trás das razões que influenciam o modo “zumbi” de consumo de informações há, também, prejuízos para a saúde mental dos indivíduos, como perda de memória e fadiga mental.

Morrendo pela informação

Reprodução/ Just Watch - Cena do filme Diário dos Mortos, 2007, na qual um cinegrafista enfrenta um zumbi sem largar a câmera para não perder a gravação.

Sair da cama e ir ao encontro do celular em busca dos principais assuntos do dia, postar sobre o que está fazendo nos stories, tuitar opiniões, curtir publicações ou conferir um viral enviado por um amigo são hábitos comuns às pessoas conectadas. A repetição dessas rotinas se torna cada vez mais rápida enquanto tenta-se dar conta de tudo.

O primeiro estudo com o objetivo de identificar como a sobrecarga de informações é percebida pelas pessoas foi conduzido em 1996, pelo Reuters Business Information, denominado “Dying for Information” ou Morrendo por Informação. Cerca de 1300 gerentes, entre seniores e juniores, de empresas situadas nos Estados Unidos, China, Cingapura e Reino Unido participaram da pesquisa.

Entre os resultados, observou-se efeitos psicológicos do problema informacional como estresse, tensões no trabalho e perda da satisfação laboral. Um total de 47% dos participantes disseram que a coleta de informações os distraía de suas responsabilidades. E 43% reconheceram que tiveram dificuldade para tomar decisões e sentiram suas habilidades de análise “paralisadas” ao precisar lidar com um grande volume de informação. Na época, os vetores da informação citados eram fax, correio de voz, e-mail, internet e conferências online, além dos métodos mais tradicionais, telefone, reuniões, correio e telégrafo.

Ao analisar o estudo, o psicólogo britânico David Lewis propôs pela primeira vez o conceito da “Síndrome da Fadiga Informativa”, que ocorre em função da sobrecarga de informações consumidas por um indivíduo. Quando este não dá conta de processá-las, frequentemente é acometido por sentimentos de angústia, falta de memória e dúvidas. A capacidade analítica é comprometida, o que pode levar à tomada de decisões equivocadas.

Falando em memória, lembra daquela notícia que você gostou, salvou para ler e esqueceu depois? Um relatório produzido pelo laboratório de pesquisa da empresa de cibersegurança Kaspersky chamou de Amnésia Digital o ato de esquecer informações deixadas nos dispositivos ou na internet.

Os cientistas consideram benéfico o ato de “estocar” a informação para dar mais lugar de processamento ao cérebro, isto é, quando deixamos de lado algumas informações como números telefônicos e back-up de notícias nos dispositivos para não nos preocuparmos. No entanto, segundo o estudo, 91% dos entrevistados admitiram serem dependentes desses dispositivos e da internet para se lembrarem de informações e disseram que eles funcionavam como uma extensão do próprio cérebro. Entre os europeus, 79,5% disseram que utilizavam a internet como um livro de referência mundial.

A empresa publicou um questionário para quem desejar saber se sofre da condição.

Por um consumo consciente

Segundo o pesquisador Leonardo Ripoll, para sairmos do estado zumbi, é preciso exercer constantemente a autocrítica.

“Precisamos nos distanciar de nós mesmos e entender o papel das crenças (epistemológicas, ideológicas, políticas, religiosas, etc.) em nossos comportamentos. Pesquisas mais recentes têm ressaltado o papel do “viés de confirmação” em nosso comportamento informacional. É preciso, portanto, reconhecer que também erramos e que precisamos ouvir o outro e aprender mais”, comenta.

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Além disso, o pesquisador recomenda a reflexão acerca do papel das redes sociais em nosso cotidiano. “Em um momento que parece promover a celebração do “eu” em forma de curtidas, compartilhamentos e notoriedade para ações superficiais e momentâneas é preciso questionar se realmente fazemos o que fazemos porque queremos de fato. Além disso, cabe indagar qual o preço que estamos pagando pelo que queremos.”

Para lidar com as angústias do ambiente digital, o grupo Viciados em Internet e Tecnologia Anônimos (ITAA) realiza reuniões semanais com participantes de todo o mundo. “O vício em consumir informações na internet é um dos motivos pelos quais as pessoas nos procuram”, explica um dos primeiros membros da organização, Tomás (para fins de anonimização, os membros do ITAA não compartilham seus sobrenomes).

“É um dos problemas que eu tive. Eu não conseguia parar de ler as notícias. Ao ler sobre algo em um site, continuava lendo e lendo até que já tinha visto dezenas de artigos sobre o mesmo assunto em outros sites e continuava atualizado meu feed de notícias onde eu encontrava mais coisas para ler. Já passei vinte horas só lendo, mas em geral não eram tantas, às vezes três. Ainda assim eu sentia que não estava no controle. Todo dia eu pensava ‘qual será o desastre de hoje?’ ”, conta Tomás.

O site do grupo oferece tradução em diversos idiomas, incluindo o português, mas as reuniões são realizadas apenas em língua inglesa. Nesta página, o grupo disponibiliza uma série de questões para que o usuário identifique se necessita de ajuda para lidar com o apego à tecnologia e às mídias.

Outro projeto, desta vez brasileiro, que busca promover a reflexão sobre o uso e consumo de informações na rede é o Contente, um estúdio de criação comandado pela publicitária Luiza Voll. Um dos pilares da empresa é promover uma conexão digital mais consciente, onde a atenção e reflexão acerca dos atos digitais é diária.

“Na nossa comunidade observamos uma série de efeitos da hiperconectividade: visão de mundo pessimista, fadiga por empatia ao acompanhar notícias negativas, comparação com o outro, sensação de não ser produtivo o suficiente, falta de tempo, ansiedade… Esses são alguns dos pontos principais de desabafo que surgem por parte dos nossos seguidores. Muitos deles nós também experimentamos na pele”, conta a publicitária.

Entre as três áreas de atuação da Contente está o instamission, uma plataforma na qual os usuários podem se conectar consigo por meio de missões, jornadas e desafios. Uma dessas jornadas foi travada pela própria Luiza em 2019. No primeiro mês da virada do ano, a empresária passou 18 dias sem acessar o Instagram, tirar fotos e ler notícias.

Segundo ela, um dos principais insights foi refletir como, muitas vezes, lia sobre um assunto viral repetidamente. “Nos dias que passei offline acompanhei (de fora da internet) a polêmica do ‘menino veste azul e menina veste rosa’. Mesmo estando fora da internet, é impressionante ver um assunto dominando um país. Não temos consciência de como o que postamos chega para quem nos lê, mas postamos mesmo assim”, escreveu a publicitária sobre a experiência.

Por ter se afastado também do Instagram, a empresária conta que descobriu motivações implícitas no hábito de publicar fotos no modo “automático” como a valorização do ego e a busca por visibilidade. As fotos estavam sendo tiradas em função da publicação e não o contrário. Segundo ela, esse é um hábito comum que adquirimos em função do convívio social e a idealização do modo blogueiro de ser, até por quem não tem esse traço na vida offline.

O pesquisador Leonardo Ripoll acredita que experiências assim só trazem benefícios. “Sair de um estado ‘zumbificado’ pode afetar questões pessoais. Têm a ver com o quanto cada um está disposto a refletir sobre si e o mundo. Isso pode ser desconfortável e trazer crises pessoais e identitárias,mas também pode deixar claro onde se pretende chegar e o que se pretende fazer enquanto ser humano que divide momentos da vida com outros.”

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