CIDADANIA

Lei Maria da Penha completa 15 anos na luta contra a violência doméstica em um Brasil que ainda maltrata suas ‘Marias’

Dispositivo legal foi reflexo de batalha judicial travada pela farmacêutica cearense Maria da Penha, vítima de duas tentativas de feminicídio pelo ex-marido. Desde 2006, cria mecanismos de prevenção e defesa às mulheres

Cadastrado por

Katarina Moraes

Publicado em 06/08/2021 às 15:29 | Atualizado em 06/08/2021 às 17:58
Elizabete é hoje uma sobrevivente da violência doméstica graças à Lei Maria da Penha, que garantiu a ela proteção contra o ex-marido - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM

“Maria, Maria, é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta”. A potência das tantas “Marias” do Brasil descrita na música de Milton Nascimento foi personificada em 2006 na mulher que transformou a própria luta em uma conquista coletiva com a Lei Maria da Penha, que completa 15 anos neste sábado (7). O dispositivo legal ganhou o nome da mais emblemática sobrevivente de violência doméstica do país, hoje paraplégica após sofrer duas tentativas de feminicídio pelo ex-marido, e fez com que a justiça reafirmasse o que deveria ser óbvio - que todas as brasileiras têm direito à vida no ainda 5º país que mais mata pelo gênero do mundo, segundo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).

A longa batalha judicial travada pela farmacêutica cearense Maria da Penha a tornou símbolo da luta pelo direito das mulheres e terminou com o estado brasileiro responsabilizado em 2001 por negligência, omissão e tolerância à violência doméstica - esta caracterizada por “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ainda orientou que, além do processamento penal do agressor, também fossem criados mecanismos que garantissem apoio às vítimas e políticas de prevenção ao crime - reunidos na lei sancionada em 2006 pelo então presidente Lula (PT).

“Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”. Artigos 2 e 3 da Lei da Maria Penha.

A Lei nº 11.340 exigiu que o poder público desenvolvesse políticas de garantias aos direitos humanos das mulheres, e responsabilizou também à família e à sociedade a criar condições necessárias para o bem estar delas. Além da agressão física, tipificou como crime as violências psicológica, sexual, patrimonial e moral, impedindo que fossem causados às vítimas danos emocionais, manutenção de relação sexual não desejada, subtração ou retenção de bens pessoais ou calúnia, difamação ou injúria.

Uma das estratégias foi a de criar Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Em Pernambuco, há dez varas criminais do tipo. A 1ª do Recife é comandada pela juíza Ana Cristina de Freitas Mota desde 2015, que, como mulher, foi atravessada pelo tema e decidiu se tornar titular do equipamento ao ver “toda a violência que a mulher sofre durante a trajetória de vida”. “A Lei Maria da Penha foi um ponto de mudança na legislação brasileira com relação ao direito das mulheres; é um marco para o país. Ela veio para trazer todo arcabouço de direito que a mulher tem, que já era previsto na Constituição Federal, mas precisava de mais algum instrumento para que realmente fosse efetivado”, explicou.

Eu fui vítima, mas hoje estou assegurada pela Lei Maria da Penha
Elizabete Gomes da Silva, cuidadora

Para a cuidadora Elizabete Gomes da Silva, 50 anos, a Maria da Penha a livrou das amarras do ex-marido, com quem conviveu por 28 anos. Durante todo esse tempo, a sobrevivente sofreu agressões físicas e psicológicas, inclusive enquanto dormia, e já chegou até mesmo a ser esfaqueada por ele. Ao decidir denunciá-lo, foi até uma Delegacia da Mulher e ganhou imediatamente uma medida protetiva - possível após a sanção da lei - o que fez com que ele se afastasse desde então.

"Quando eu via as mulheres falando que se livraram do marido pela Lei Maria da Penha, eu chorava e imaginava que jamais teria essa defesa por mim. Ele me torturava, torturava os meus filhos e até os meus animais. Até que um dia ele deu uma cabeçada na minha boca na frente da igreja, e eu chamei a polícia. A delegada disse para ele que se ele ligasse para mim, ela iria buscá-lo onde estivesse, e ele me deixou", relatou.

15 anos da Lei Maria da Penha. Elizabete foi vítima de violência doméstica por décadas. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM
15 anos da Lei Maria da Penha. Elizabete foi vítima de violência doméstica por décadas. - BOBBY FABISAK/JC IMAGEM

No último dia 28 de julho, foi promulgada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a Lei 14.188/2021, que inseriu no Código Penal o crime de violência psicológica, descrito como dano emocional causado "à que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação". “Agora há mecanismos legais para enfrentar na condução desse tipo de violência. Embora a lei, no meu entender, ainda precise ser um pouco amadurecida, já é um grande passo de reconhecimento”, defendeu Ana Cristina.

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Subnotificação: um desafio ainda a ser enfrentado

A violação de direitos das mulheres, entretanto, continua a ser uma realidade. Em Pernambuco, de 2007 a 2021, 380 delas ganharam medidas protetivas após denunciarem seus agressores, segundo a Secretaria de Defesa Social (SDS-PE). No primeiro ano da série histórica, foram 27. O índice continuou crescendo até 2019, quando aumentou para 506 - o maior da série -, mas caiu em 2020 para 438. O mesmo aconteceu com os dados de registros de violência doméstica, que cresceram desde 2015, quando 30 mil boletins de ocorrência foram prestados, até 2019 - com 42. A covid-19 chegou e fez com que as denúncias caíssem para 41 mil em 2020 - mesmo ano com maior número de feminicídios no Estado: 75.

Com a chegada da pandemia, a subnotificação de casos - ainda a maior chaga da violência doméstica, segundo especialistas - foi, para a gestora do Departamento de Polícia da Mulher, Fabiana Leandro, consequência da necessidade do isolamento social imposto pela doença. “O que notamos na pandemia foi que muitas mulheres não denunciavam por estar junto aos agressores, e acho que isso refletiu inclusive no aumento do feminicídio. Agora, com a flexibilização [das atividades econômicas], por causa da queda dos índices da pandemia, o número de ocorrências já tem voltado a aumentar”, disse.

Para a cofundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, Regina Célia, a incidência do ciclo da violência também cresceu. “A violência não diminuiu, se uniu à subnotificação, que foi fortalecida pela ideia de confinamento. [Na pandemia], o ciclo da violência, nas três fases, de tensão, agressão e de “lua de mel”, se agravou, e ainda mais pela enxurrada de desemprego. Quando tínhamos um casal em que os dois trabalhavam, o ciclo operava de sexta a domingo. Se a mulher perdeu o emprego, o ciclo teve mais presença. Se ela continuou no emprego e ele não, ela sofreu violência moral. Se os dois estavam desempregados, acontecia durante toda a semana”, expôs.

Com exceção do último ano, o aumento das denúncias acompanhava, desde 2006, uma queda de 34% nos casos de crimes violentos letais intencionais contra mulheres em Pernambuco - como homicídios dolosos. “Embora vejamos que a quantidade de casos de violência se multiplicam, essa lei trouxe alguns avanços na efetivação do direito das mulheres. De toda forma, ainda há muito a se fazer. É uma lei debutante dentro de uma cultura muito patriarcal, machista e misógina, e não é de um dia para a noite que as coisas mudam; mas ela, sem sombra de dúvidas, é um instrumento essencial para essa mudança”, defendeu a juíza.

Raízes da violência

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, divulgado no último 15 de julho, trouxe dados nacionais preocupantes. Segundo a pesquisa, 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirmou ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, durante a pandemia de Covid-19; ou seja, cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. Além disso, 4,3 milhões de mulheres foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. Isso significa dizer que, a cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil.

Nenhuma mulher abre seu coração e escolhe um companheiro para construir uma relação tóxica
Laudjane Domingos, gestora do Centro de Referência Clarice Lispector

“A violência contra a mulher é estrutural. Historicamente, elas sofrem violações em ambientes religiosos, educacionais, institucionais”, explica Laudjane Domingos, gestora do Centro de Referência Clarice Lispector, equipamento no Recife que desde 2002 acolhe vítimas de violência doméstica. “Quantas vezes ouvimos ‘o que ela fez para ele se comportar desse jeito?’. Sempre é a questão da culpabilização da mulher em relação a uma situação de violação de direitos. Nenhuma mulher abre seu coração e escolhe um companheiro para construir uma relação tóxica. Ela tem um projeto de felicidade e quer ser feliz, quer construir família, ter filhos, ter uma vida prazerosa. Nenhuma mulher formaliza laços para desfazê-los

Essa estrutura patriarcal fez com que a bióloga Amanda Santos*, de 44 anos, chegasse a pensar que não havia homens bons no mundo. Quando criança, assistia à própria mãe apanhar do pai, e, quando casou, em 1996, viu a história se repetir. “Foram várias situações de agressões físicas e psicológicas, e até estupro, mas na época não caracterizei assim, só pensei nisso muito depois”. A história da vítima expõe, para a juíza Ana Cristina, dois dos temas ainda poucos falados na problemática da violência doméstica: o impacto nos filhos do casal e a violência sexual dentro do casamento.

Graças à Lei Maria da Penha, tenho encontrado apoio
Amanda Santos, bióloga

Amanda sempre acreditava que o marido ia mudar, mas as agressões só pioravam. Até que, em 2009, decidiu se separar. Oito anos depois, quando passou a morar com o atual companheiro, vieram as ameaças de morte. “Ele disse que se ele continuasse morando comigo, ia matar os dois. Foi quando tomei a decisão de procurar a Delegacia da Mulher. Eu cheguei no limite, não aguentava mais. Estava com medo de sair na rua”. Medidas protetivas foram tomadas, que o afastaram. Mas, neste ano, o ex voltou a rondá-la - o que a levou a procurar ajuda novamente. “Graças à Lei Maria da Penha, tenho encontrado apoio, mas ainda estou muito abalada com tudo isso. É como se eu não visse um fim nessa história. Até quando?”, questionou.

Para a juíza Ana Cristina, casos como o de Amanda acontecerão "até" que a cultura da sociedade seja mudada, fazendo com que as vítimas entendam que são vítimas, os agressores entendam que são agressores, e que a população acolha as mulheres agredidas. "A cultura da violência contra a mulher é muito difícil de barrar porque está enraizada na construção social dos brasileiros. Não é só o judiciário que previne, mas a sociedade como um todo. Ainda falta muita educação, e precisamos trabalhá-la desde cedo". Para que, enfim, todas possam "viver e amar como outra qualquer do planeta".

*A entrevistada pediu que um nome fictício fosse usado na reportagem.

Como pedir ajuda e denunciar

Para ajudar esta e outras vítimas, a população precisa estar atenta aos possíveis casos de violência doméstica, alerta Fabiana Leandro. “Não só as mulheres podem denunciar. É importante que pessoas próximas, amigos, familiares e vizinhos denunciem. Existem os canais 180, 190 e a Ouvidoria da Mulher do Estado que podem repassar as denúncias para que as delegacias apurem, instaurem procedimento policial e investiguem o agressor. O ideal é ligar na hora da agressão para que a PM consiga efetuar o flagrante. A população se conscientizar e começar a denunciar é uma colaboração enorme com a rede de enfrentamento”.

Disque 180 - Central de Atendimento à Mulher

A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 é um serviço de atendimento telefônico que funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive durante os finais de semana e feriados. Toda ligação feita à Central é GRATUITA e o objetivo é disponibilizar um espaço para que as mulheres possam denunciar violência de gênero em suas diversas formas. As ligações podem ser feitas de qualquer telefone - seja ele móvel ou fixo, particular ou público (orelhão, telefone de casa, telefone do trabalho, celular). O Disque 180 foi criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.

Polícia Militar - Disque 190 (quando o crime está acontecendo)

Disque Denúncia: (81) 3421 9595 (para outras situações)

Disque Denúncia do MPPE: 0800 2819455

O serviço do Ministério Público de Pernambuco funciona de segunda a sexta- feira, das 12h às 18h, e tem como objetivo receber denúncias acerca de assuntos diversos referentes às áreas criminal, civil e de cidadania, bem como realizar o seu acompanhamento.

Ouvidoria da Mulher do Estado de Pernambuco - 0800 2818187
Central de Teleatendimento à Cidadã Pernambucana 24h / Ligação gratuita
Avenida Cais do Apolo, nº 222, 3º andar, Centro, Recife, PE,
CEP 50030-905.
Horário de atendimento: das 8h às 18h, dias úteis.
Atendimento virtual: ouvidoria@secmulher.gov.pe.br

Delegacias Especializadas Da Mulher

Recife
1ª Delegacia de Polícia Especializada da Mulher
Rua do Pombal, Praça do Campo. Santo Amaro. Recife. Fone: (81) 3184.3352

Jaboatão Dos Guararapes
2ª Delegacia de Polícia Especializada da Mulher
Estrada da Batalha, s/n°. Prazeres. Jaboatão dos Guararapes.
Fone: (81) 3184.3444/3445

Petrolina
3ª Delegacia de Polícia Especializada da Mulher
Rua Castro Alves, nº 57. Centro. Petrolina. Fone: (87) 3866.6625

Caruaru
4ª Delegacia de Polícia Especializada da Mulher
Rua Dalton Santos, nº 115. São Francisco. Caruaru. Fone: (81) 3719.9106

Paulista
5ª Delegacia de Polícia Especializada da Mulher
Praça Frederico Ludgren, s/n°. Paulista. Fone: (81) 3184.7072

Garanhuns
9ª Delegacia de Polícia Especializada da Mulher
Rua Frei Caneca, nº 460. Heliópolis. Garanhuns. Fone: (81) 3761.8507

Instituto Médico Legal
Rua do Pombal, nº 455. Santo Amaro. Recife. Fone: (81) 3222.5814

Centro de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Sexista

Recife
Centro de Referência Clarice Lispector
Rua Doutor Silva Ferreira, nº 122, Santo Amaro. Fone: (81) 3232.5370/0800.2810107

Centro da Mulher Metropolitana Júlia Santiago
Endereço: Rua Carapeba, sem número, Brasília Teimosa. Fone 1: (81) 3183.2995 - Fone 2: (81) 3355.2992

Jaboatão
Centro de Referência Maristela Justus
Rua Travessa São João, nº 64. Massaranduba. Fone: (81) 3468.2485

Olinda
Centro de Referência Márcia Dangremon
Rua Maria Ramos, nº 131. Bairro Novo. Fone: (81) 3429.2707/0800.2812008

#UmaPorUma

A violência contra a mulher é constante e frequentemente acaba em tragédia. Existe uma história para contar por trás de cada feminicídio, em Pernambuco. O especial Uma por uma contou todas. Em 2018, o projeto mapeou onde as mataram, as motivações do crime, acompanharam a investigação e cobraram a punição dos culpados. Um banco de dados virtual, com os perfis de vítimas e agressores, além dos trágicos relatos que extrapolam a fotografia da cena do crime. Confira o especial Uma por Uma aqui.

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