Instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os Conselhos Tutelares têm como função proteger os direitos dessa parcela da população. Mas a realidade enfrentada pelos órgãos municipais passa bem longe daquela idealizada pela legislação na década de 1990. A falta de estrutura e de integração entre os atores que fazem parte da rede de proteção estão entre os principais problemas. As eleições, realizadas a nível nacional no último dia 6 de outubro, ainda evidenciaram outro entrave: a influência política e ideológica, que muitas vezes acaba por tirar do foco a implementação de importantes políticas, na opinião de especialistas.
Para Ana Farias, presidente do Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Cidade do Recife (Comdica), a função do conselheiro é desconhecida por grande parte da população. “É um trabalho importante de proteção e denúncia de violações de diretos, que vão desde o acesso à escola, à saúde, falta de moradia, até casos de violência doméstica e sexual. São questões que ferem a dignidade humana. Para isso existe o ECA e, dentro dele, os conselhos, com o papel de zelar pelo cumprimento da Lei.” A capital é o município com maior número de Conselhos Tutelares do Estado. Ao todo, são oito órgãos no Recife, distribuídos em todas as regionais.
Pernambuco tem 212 conselhos tutelares, incluindo o distrito de Fernando de Noronha. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, todos os 184 municípios contam com a presença desses órgãos, com cinco conselheiros em cada, totalizando 1060 profissionais.
Embora estejam em todos as cidades, os conselhos, sozinhos, não conseguem garantir os direitos de crianças e adolescentes. “Muitas vezes os municípios são deficitários no atendimento. Embora o estatuto exista há quase 30 anos, muita gente ainda não o conhece na essência. É um trabalho que precisa ser integrado entre o Conselho Tutelar, os juízes, promotores, a polícia, as áreas de ação social, educação, saúde e assim por diante. O que vemos é uma fragmentação, quando, na realidade, o sistema de garantia de direitos não pode ser fragmentado”, aponta o promotor Guilherme Lapenda, do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Infância e Juventude (Caop Infância e Juventude) do Ministério Público de Pernambuco (MPPE).
A falta de articulação entre os órgãos é apenas um dos problemas. Em algumas situações, os serviços básicos sequer existem. “Um dos maiores empecilhos para a aplicação das medidas de proteção é a ausência dos serviços. Há municípios onde não existem creches suficientes para a demanda. Outros não têm vagas nas escolas. Na saúde, mais problemas, principalmente no que diz respeito à saúde mental. Existem locais onde há Centros de Atenção Psicossocial (Caps), mas não existem Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), que são os que trabalham com média e alta complexidade”, denuncia Ceça Pimentel, presidente da Associação de Conselheiros e Ex-conselheiros Tutelares de Pernambuco.
As mazelas se estendem às estruturas dos Conselhos, que não têm manutenção de equipamentos e veículos, por exemplo. “Essas são situações enfrentadas em todas as regiões. No interior, o acesso aos serviços é mais limitado, mas na Região Metropolitana do Recife a demanda é muito maior. São desafios diferentes”, acrescenta Ceça.
Em 2019, houve um aumento ainda não quantificado da participação dos eleitores nas eleições para os Conselhos Tutelares no Estado. Os dados ainda estão sendo reunidos pelo Caop Infância e Juventude. “Muitos eleitores compareceram às urnas. Estamos aguardando as finalizações das informações que estão sendo repassadas pelos promotores para apresentar uma totalização em percentual. No entanto, houve o aumento da participação popular”, avaliou Lapenda.
O maior engajamento da população pode ser justificado pela politização e polarização que marcaram as eleições para os Conselhos Tutelares no último domingo. De um lado, candidatos ligados à entidades religiosas e a uma agenda conservadora. De outro, um grupo engajado em pautas alinhadas a uma visão de mundo mais progressista e aos movimentos sociais. Para a cientista política Priscila Lapa, a divisão é reflexo da polarização que marcou as eleições presidenciais do ano passado e que chega a todas as instituições. “Vivemos hoje uma disputa dos espaços públicos de poder, em todas as instâncias da sociedade, entre duas visões de mundo. De uma forma geral, isso traz prejuízo para as políticas públicas, porque a disputa de narrativas pouco se materializa em propostas concretas de como devem ser as ações”, avalia.
Segundo ela, o ECA, da forma em que foi concebido, pode estar ameaçado. “A pauta dos direitos humanos está sendo totalmente revisada neste novo ciclo político. Uma série de discussões, como a criminalização dos jovens, que vinham sendo discutidas há anos, ganham força. Vamos chegar a um ponto em que sairemos da discussão para a sanção. Talvez a gente chegue a uma descaracterização do ECA, uma desconfiguração de sua origem.”