A rotina de Luzinete era a mesma. Sentava no chão do pequeno espaço invadido há poucas semanas, numa comunidade ainda sem nome, e cavava ali mesmo, no terreno de mangue dentro do barraco, o almoço da família: pequenos peixes e caranguejos. Estávamos em 1975 e moradores de uma comunidade batizada de Mata-Sete começava a ser despejada de uma área que ía onde hoje é o Shopping Center Recife, até a beira-mar de Boa Viagem. A nova área onde as famílias eram empurradas a fórceps não tinha ainda um nome, mas o destino já guardava uma história de resistência para ela. Estavam sendo retiradas porque a região já estava passando pela especulação imobilária. Prédios como o Holiday, Acaiaca e a Casa Navio estavam sendo construídos.
Dois mil e doze. Luzinete Alves do Nascimento, ou Lu da Pamonha, passa o dia no comando de uma cozinha e de 16 funcionários fixos, todos nascidos e criados na comunidade, filhos e netos dela, com o dinheiro das comidas de milho que produz há 35 anos. Em nada se parece com a mulher que na década de 70 foi uma das centenas de pessoas que invadiram aquela área, logo batizando de Entrapulso. A expansão do que antes era uma favela, formada por casas feitas de papelão e palhas de coqueiro, cresceu e resistiu tanto quando a família de dona Lu. Hoje a Entra a Pulso é uma mini-cidade encravada num dos bairros mais nobres do Recife, Boa Viagem, bairro da Zona Sul, conhecida principalmente pela praia e badalação. A comunidade virou uma mini-cidade dentro da cidade. Sobreviveu e cresceu com o trabalho dos moradores e com pouquíssima ajuda do poder público, ainda sofrendo com a falta de pavimentação e saneamento. Uma ilha que resistiu a especulação imobiliária.
Invasão nascida de outra invasão, a Entrapulso começou a ser formada com a expulsão de pescadores e trabalhadores rurais que tinham criado a Mata-Sete. As famílias íam construindo os barracos naquela área de mangue mas eram retiradas pela prefeitura. Foram resistindo. Muitos invasores da época moram no lugar até hoje. “Eles derrubavam pela manhã, a gente vinha a noite e reconstruía tudo”, fala dona Lu. Por isso o nome de Entra a Pulso. O resultado da resistência foi vindo aos poucos.
Mesmo com tantos problemas, o orgulho de ser um morador está estampado em cada morador de quem vem de fora para participar do dia a dia do lugar. “Eu moro em Vitória de Santo Antão e venho todo dia pra Recife. Há um ano trabalho nessa escola e não quero deixar. Fui muito bem recebida por todos aqui, alunos, pais e a comunidade”, relatou a professora Joseane Gomes. Ela passou num concurso da Prefeitura do Recife e ensina na escola que existe na comunidade, a Abílio Gomes. A outra escola é a Inalda Spineli, do Governo do Estado. A luta para melhorar o futuro da comunidade tem endereço certo. “Lutamos por mais educação. Precisamos de pelo menos mais uma escola aqui dentro”, disse Lot.
A Entrapulso ainda cresce. Em maio passado dezenas de famílias que invadiram a área em cima do túnel Augusto Lucena, que margeia parte da comunidade, foram retiradas do local. Imediatamente invadiram a área ao lado e foram construindo moradias de madeira, papelão e algumas de alvenaria. Já são 99 barracos no local e outros estão sendo construídos. “Viemos pra cá porque não temos pra onde ir. Não vamos sair”, disse Eliane Oliveira. Ironicamente essa nova região do lugar é conhecido pelos moradores antigos como “a invasão”. “Aqui é nossa casa”, desabafou Eliane. Resistindo, como os primeiros habitantes, no passado.