Tereza Costa Rêgo tem uma relação intensamente ambígua com seu tempo. Não é apenas intérprete, mas testemunha da história – essa personagem que ora se comporta como ambiência, ora assume o protagonismo mais urgente em sua obra. Quando as botas da última ditadura avançaram sobre o País, ela partiu para o exílio. Com o companheiro e personagem de primeira grandeza do comunismo brasileiro, Diógenes Arruda, emigrou para o Chile vizinho – onde não pôde ficar muito tempo. Com o golpe que derrubou Allende, teve que partir para a Europa. Assim, as curvas da vida a fizeram ver e viver o 64 no Brasil, o 73 Chileno, o 68 em Paris e, numa esquina da trajetória, até a Revolução Cultural Chinesa.
“Foi tudo muito doloroso, mas não deixa de ter sido um privilégio que aumenta a minha responsabilidade como artista ter vivido tudo isso”, diz a pintora que, aos 84 anos, vive uma obsessão criativa e criadora quem tem a história como bússola de sua narrativa pictórica. Há três anos, Tereza se debruça (e se equilibra, literalmente) sobre um imenso painel com quase dois metros de altura e impressionantes 15 metros de largura. No quadro Tejucupapo, ela interpreta, de forma épica, um dos mitos de um dos períodos sempre mais mitificados da história pernambucana e brasileira: a presença e expulsão dos holandeses no Brasil.
“As imagens dessa batalha me acompanham há muito tempo. É mais ou menos como o que aconteceu com a minha série sobre o bordel. Tinha fascinação pelo tema, mas recalques antigos para trazê-lo a público. Na maturidade, resolvi vomitar o assunto. Chegou, agora, a hora de Tejucupapo”, diz a artista, atualmente quase reclusa em função do painel. Seu esforço não é apenas intelectual e pictórico, mas físico. “Há dias em que pinto até a exaustão e vou dormir para recuperar as forças”, diz ela, que, embora acredite que “o conhecimento da história é importante até para ir à esquina, comprar pão”, não pretende intelectualizar excessivamente a obra.
“Não sou uma intelectual, mas uma operária do meu ofício”, diz Tereza que, pouca gente sabe, acumula formação acadêmica em história. Nos anos de militância em São Paulo, fez a graduação na Universidade de São Paulo. Depois, exilada, cursou uma pós-graduação na Sorbonne, em Paris. “Este é um mergulho profundo, mas um mergulho na minha pintura.”
Ela pinta com a disciplina da obsessão. Divididas em sete grandes partes, sete grandes pranchas de madeira pesada, o mural recebe gestos largos como sua pintura. “Com (o movimento) da Brigada Portinari, descobri que minha pintura não era uma pintura de pequenos, mas de grandes quadros, meus movimentos se alargaram para nunca mais se encurtar de novo”, lembra Tereza que, ao lado de outros artistas, politizou com suas pinceladas muros e paredes públicas o Recife e a Olinda redemocratizados após o governo do general Figueiredo. Um movimento dos anos 1980, inspirado nos muralismos chileno e mexicano, do qual artistas pernambucanos participaram não apenas como forma de imprimir mensagens políticas, mas de ampliar o alcance público de suas pinturas.
Não há previsão para a conclusão do mural. “Eu devo trabalhar, pelo menos, mais seis meses sobre ele. Durante esse tempo, não quero fazer ou pintar nada mais”, prevê a pintora. Tereza pinta, como sempre, a partir dos quadros cobertos de tinta negra. Com uma paleta de cores predominantemente ocre e vermelho, vai obtendo luzes, perspectivas e contornos numa grande paisagem humana, sangrenta, sublinarmente sensualizada, para o protagonismo das heroínas de Tejucupapo. Como de hábito, imprime a própria saliva para esfumaçar e texturizar figuras.
Tejucupapo é um pequeno vilarejo nas cercanias das praias de Ponta de Pedras e Catuama, em Goiana, a cerca de 60 quilômetros do Recife. Num dos últimos suspiros da presença holandesa no Nordeste do Brasil, cerca de 600 compatriotas de Nassau teriam saído, acuados, das imediações do Forte Orange, em Itamaracá. Partiram em direção ao vilarejo, na busca por cajus e farinha de mandioca, alimentos que ganhavam importância nas circunstâncias de exceção.
Para invadir a vila, teriam escolhido um domingo, dia em que os homens se ausentavam para vender os produtos da pesca comunitária. Conforme se firmou no imaginário local, quatro mulheres, quatro marias, teriam liderado a reação e expulsado os forasteiros. Usando, como armas, águas de pimenta e chuços, instrumentos pontiguados para a pesca do sururu.
QUATRO MARIAS
No quadro, aparecem as quatro marias – Camarão, Quitéria, Clara e Joaquina. Mas não de forma esquemátima. “Eu não consigo compartilhar daquela visão da história que se passa na escola, de que a Batalha dos Guararapes foi vencida, patrioticamente, por pelotões organizados, dividindo índios, negros e brancos”, diz a pintora, recorrendo a um episódio oficializado pelos livros como comparação. As batalhas dos Guararapes, marcos históricos regulatórios ou definidores da unidade nacional, já foram tema, aliás, de alguns momentos tensos da pintura de Tereza Costa Rêgo.
Se antes a artista pensava em expor Tejucupapo sozinho, agora planeja inclui-lo numa mostra maior, um projeto ainda embrionário e provisoriamente batizado de A história na obra de Tereza Costa Rêgo. Uma exposição ambiciosa, pensada não apenas para o Recife, mas para correr algumas das principais cidades brasileiras. “São mais ou menos uns 30 grandes obras em que a história assume importância nos quadros”, avalia o fotógrafo Daniel Rozowykwiat, curador da obra da avó.
Em quadros de séries responsáveis por abrir fendas na memória do público pernambucano, como Sete luas de sangue (2000), momentos icônicos da historiografia brasileira ganham uma lente épica de aumento por seus pinceis. Como no painel A ceia larga ou a pátria nua (4,8m X 2,2m, 1999) em que a pátria materializada numa grande e curvilínea dama nua é servida à mesa diante de vultos proeminentes da política brasileira. De Dom Pedro a Collor, passando por Vargas.
A tela mostra cenas da execução de Frei Caneca, os conflitos gerados pelo Estado Novo e pelo Golpe Militar de 1964. De pé, num canto, está a figura não-nítida de Dom Hélder como um Cristo da grande ceia onde todos assumem áurea de traidor. Alguns desses políticos aparecem associados a animais recorrentes na sintaxe imagética de Tereza. Do lado de fora do palácio, batalhas e uma multidão de populares, privados do banquete.
Tejucupapo é mais um salto de Tereza para fora de seus limites e zona de conforto. Um movimento em que sua pintura se une à sua personalidade. “Eu sou o voo, nunca o ninho”, gosta de autodefinir-se. “Esse caleidoscópio do tempo acabou por ocupar minha pintura com temas históricos”. De seu ateliê, em Olinda, ela não deixa de observar, aliás, as manifestações populares que tomam conta do País. “No começo, não entendi. Mas, de repente, o País acordou, tá pedindo socorro. Contra a roubalheira, os mensalões, as filas da saúde, esses gastos com copas, os preços altíssimos nos supermercados”, diz ela, com a intuição de que a história, mais uma vez, escreve um capítulo diante de seus olhos.
Em sua trajetória, algumas das obras mais contundentes são grandes narrativas pictóricas, densas, sobre momentos enormes do Brasil (ou de nós mesmos). Momentos com a complexidade narrativa que só a história permite ou comporta. Como, doutra feita, tive ocasião de definir-lhe: “Banhados de sangue, suores, secreções. Espaços e cataclismas rotinizados. Em suas narrativas de grandezas biográficas, não faltaria mesmo a morte. Mas nunca a morte simples, opaca e unidimensional dos que não vivem o mundo onde estão. Mesmo a agonia, em suas obras, está banhada de um certo mistério gozoso. Porque, na obra de Tereza, seus personagens (nós mesmos) morremos como vivemos: em estado de paixão”.
Relutante em mostrar aos amigos, tensa só de pensar em ver a obra fotografada antes de concluída (por isso a ausência de imagens ou reproduções nesta reportagem), Tereza não sabe ainda muito bem onde Tejucupapo vai terminar. Do painel, tem só uma certeza: não é um quadro para ser adquirido por colecionadores particulares. “Tenho certeza de que este é o último grande trabalho da minha vida”, diz, revelando o desejo de que a obra permaneça como uma contribuição sua à pintura brasileira como peça de acervo de algum grande museu nacional. “Não vou parar ou me aposentar, mas não terei mais forças para pintar algo tão grande”, diz ela, com a intuição semiconsciente de que pinta, com aquelas mulheres de Goiana mistificadas pela crônica dos historiadores, sua Guernica.