Desde que despontaram como uma das principais forças criativas do cinema nacional - a partir da retomada da produção, na metade dos anos 1990 -, que os cineastas pernambucanos dão a seus filmes uma feição inovadora. Seja pelos procedimentos estéticos ou pela renovação temática, o que se viu nos últimos 20 anos foi um bom punhado de filmes em eterna ebulição criativa, que não parecem saídos de nenhum manual ou nenhuma fórmula em vias de esgotamento.
Um dos principais elementos constitutivos do cinema pernambucano, o apelo às canções - que entram na trilha sonora dos filmes com os sentidos mais variados - tem sido uma constante. De Baile perfumado (1996) a A história da eternidade (2013), numa lista que comporta cerca de 20 longas-metragens, elas imprimem um selo forte na produção local, marcando os filmes ora com lembranças pessoais dos realizadores, ora com descobertas - mas sempre com um raro sabor de universalidade.
A quantidade de canções, que brotam a cada novo longa produzido no Estado, é tão grande que os espectadores já dispõem de uma discoteca capaz de montar a mix-tape que desejarem. Quer uma festa só com músicas de filmes? Pesquise que você vai chegar lá. Nos últimos quatro anos, a novidade foi a inserção de canções internacionais, agora mescladas às assinadas por cantores locais e de outras partes do País.
Antenados e com tráfego fácil em alguns dos principais festivais de cinema do mundo - Cannes, Berlim, Roterdã e Locarno incluídos -, Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro e Daniel Aragão embelezaram a trilha sonora de seus filmes com hits internacionais de primeira grandeza do pop anglo-americano e da soul music. Com precisão de audiófilos e melômanos, estes cineastas inseriram canções em cenas que também grudam nas retinas dos espectadores.
Vejamos os exemplos:
1. Em O som ao redor, Kleber pinçou Crazy little thing called love, um clássico do começo dos anos 1980 da banda inglesa Queen, que, apesar do sucesso na época, entra no filme com um grande sabor de novidade. A canção pontua um momento de relax de Bia (Maeve Jinkings) e comenta bem a situação da personagem, uma dona de casa que camufla os problemas íntimos ao se dedicar excessivamente ao que acontece entre quatro paredes. "Em relação ao Queen, a gente sempre pensa em Radio Gaga ou We will rock you, mas essa canção, que pouca gente conhecia, quando bate não dá para explicar", reflete Kleber.
2. Daniel Aragão ainda não estava montando Boa sorte, meu amor quando teve uma pequena epifania. Ao se deparar com um close do rosto da atriz Christiana Ubach, no computador onde as imagens brutas do filme estavam armazenadas, o plano entrou em sincronia com a canção I don’t need you around, do soul man Donny Hathaway, que tocava em seu sistema de som. Injustamente esquecida, a canção foi sacada por Daniel de um vinil que ele havia comprado em Los Angeles. "Como era uma música sofisticada dos anos 1970, muito emocional e agressiva, eu achei que tinha a ver como filme", explica o cineasta, que postou um teaser no YouTube e deixou muita gente com gosto de quero mais.
3. Não menos feliz foi Gabriel Mascaro, em Ventos de agosto, quando Baby, can I hold you toma de assalto um belo momento do filme. Sentindo-se abandonado pela namorada Shirley (Dandara de Morais), o pescador Jeison toma todas enquanto é embalado pela linda voz de Tracy Chapman que toca no rádio. Todas as canções do filme, vale lembrar, saem de fontes externas como rádios e players de mp3, entre elas a seleção de punk rock que acompanha Shirley e o sertanejo das casas da vila onde a trama se desenrola.
Pode-se dizer que tudo começou a partir da virada de 1996 para 1997, quando Paulo Caldas e Lírio Ferreira, em Baile perfumado, e Kleber Mendonça Filho, em Enjaulado, escolheram a trilha sonora como um dos principais componentes estéticos de seus filmes.
Retrospectivamente, Kleber admite que há um excesso de canções em Enjaulado, que tem entre seus compositores DJ Dolores, Faces do Subúrbio, Dona Margarida Pereira & Os Fulanos, Otto, Matalamão, Lara Hanouska, Paulo Francis Vai pro Céu e outros nomes da cena da época. "Acho que teve o clima e a alegria de enfiar uma grande quantidade de músicas. Mas eu gosto das participações de Hélder (Aragão, o DJ Dolores) e do Faces do Subúrbio, com Ruas da cidade. E 1997 foi um ano único, com filmes cheios de música como Jackie Brown, de Quentin Tarantino", relembra Kleber.
A sonoridade da mangue beat presente em Baile perfumado, por meio de composições de Chico Science & Nação Zumbi, Fred Zeroquatro e Mestre Ambrósio, abriu uma clareira que até hoje marca a obra cinematográfica de Lírio Ferreira, cujos filmes são pontuados por músicas emblemáticas. Além de um consumado diretor de videoclipes e de dois documentários sobre ícones da MPB - Cartola, em parceria com Hilton Lacerda, e O homem que engarrafava nuvens, sobre Humberto Teixeira -, Lírio continuou a espalhar seu gosto pelas canções em Árido movie e o inédito comercialmente Sangue azul.
Além de Kleber, Daniel Aragão, Gabriel Mascaro e Lírio, mais e mais cineastas estão dando às canções um lugar de destaque em seus filmes. Hilton Lacerda, por exemplo, em vários momentos de Tatuagem deixa que as músicas canalizem para o espectador parte de seu discurso político-amoroso, como nas inesquecíveis Polca do cu e Volta. A esta turma juntam-se também nomes como Renata Pinheiro (Amor, plástico e barulho) e Camilo Cavalcante (A história da eternidade), que vão estrear seus novos filmes no começo deste ano. Extremamente musicais, os dois longas têm nas canções alguns de seus melhores momentos. Portanto, abra os olhos e apure os ouvidos para o cinema pernambucano.
A mix-tape do cinema pernambucano
01. I don´t need you around - Jackie Wilson (Boa sorte, meu amor)
02. Charlie Anjo 45 - Caetano Veloso (O som ao redor)
03. Eu queria morar em Beverly Hills - Paulo Francis vai pro Céu (Eletrodoméstica)
04. Volta - Johnny Hooker (Tatuagem)
05. Luvas verdes - Silvério Pessoa (Vinil Verde)
06. Baby, can I hold you - Tracy Champman (Ventos de agosto)
07. Fala - Secos e molhados (A história da eternidade)
08. Going back to my roots - Lamont Dozier (Boa sorte, meu amor)
09. Forever - Pholhas (A história da eternidade)
10. Setúbal - DJ Dolores (Enjaulado e O som ao redor)
11. Serra da boa esperança - Francisco Alves (Cinema, aspirinas e urubus)
12. Sangue de barro - Chico Science e Nação Zumbi (Baile Perfumado)
13. Crazy little thing called love - Queen (O som ao redor)
14. Quando a cidade dorme - Renato e seus Blue Caps (Árido movie)
15 - A desconhecida - Fernando Mendes (Snague azul)
16. Cadávres en série - Serge Gainsbourg (O som ao redor)
17. Czardas - Os incríveis (Àrido movie)
18. Rapsódia cubana - Ernesto Lecuona (Sangue azul)
19. Bye bye, amor - Samuel Vieira (Amor, plástico e barulho)
20. Polca do cu - Irandhir Santos (Tatuagem)